Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

30/10/2011

conto 10: A face de Lilinha

A face de Lilinha

Lilinha atravessou a rua sete, em desespero, enlouquecida. Minutos antes viram-na abrindo  o portão com violência e ouviram o que o pai berrava. “Sua vagabunda!”. Uma vizinha contou que a mãe ficara impassível, talvez espantada. Lilinha atravessou a rua 7 correndo, disseram que estava louca mesmo. Os olhos esbugalhados e as mãos prendendo a cabeça como se quisesse arrancá-la do corpo. Foi embora e não mais voltou. Antes disso, meses atrás a gente tinha conversado, a gente sempre conversava e eu pedia pra ela ir com calma e não agir sem pensar. Mas Lilinha era impulsiva, agia com rapidez e emoção. Era a minha melhor amiga de infância e as pessoas nos achavam bem parecidas. Não éramos.
Eu sempre fui quieta, vivida por dentro e ensimesmada. Lilinha era uma pinga fogo, alegre, moleca e levada. Não consigo formular imagens estáticas dela, a vejo sempre saltitante, afogueada e de olhos acesos. Entre os cinco ou seis anos, ela já andava solta pela rua, só de calcinha; parecia que voava na bicicleta emprestada da vizinha. Muito  solta, vivia brincando com os meninos, se metia em brigas e confusões. Sempre aparecia lá em casa pra conversar, mas logo saia correndo pra ir na casa de outra colega ou fazer alguma danação. Eu tive  muito ciúmes dela com os outros, eu achava que ela não me dava atenção que eu merecia. Mas inquieta daquele jeito, como poderia perceber que uma menina quieta como eu podia gostar tanto dela a ponto de sentir ciúmes. Lilinha não tinha nem 11 anos e já namorava os moleques da rua. Foi ela quem primeiro beijou o Heder, o menino mais bonito da rua Sete, filho da D. Ilza. Nós duas e mais as outras éramos apaixonadas por ele naquela época. Lilinha ficou com ele e saiu contando pra todo mundo. Ela não conseguia ficar quieta, muito menos calada.
Um dia me contou que andava pela rua treze de maio fazendo novas amizades. Eu não conseguia dar conta de quantas coisas Lilinha conseguia aprontar. A mãe e o pai trabalhavam fora o dia todo e ela e os irmãos ficavam sozinhos. O irmão mais velho, muito fechado e tímido, não conseguia controlar a irmã. Naquela época, alguma vizinha já contava pra minha mãe que Lilinha não era boa companhia. “É uma boa bisca, essa menina”. Falavam pra minha mãe não deixar eu andar com ela. Contudo, minha mãe se dava bem com D. Ducarmo, que lhe tinha apreço e eu jamais aceitaria ficar longe de Lilinha. Mas minha amiga, porém, não representava perigo algum a mim ou a quem quer que fosse, a não ser a ela mesma. Sua euforia e desejos precoces talvez a consumissem por dentro e sem quase nenhum controle dos pais ausentes, ela vivia aqueles dias como se fossem os últimos. Muito, muito viva era minha coleguinha. “Muito espevitada essa menina!”, “garota sem freio”. “Atrevida, isso sim!” Ela com certeza não se importava com nada e nem com a opinião de ninguém. Nunca a vi reclamando que alguém tinha falado mal dela. E também nunca a vi triste ou pensativa. Mas as tristezas de Lilinha vieram um dia, trazidas como de supetão, assim como quando chegavam as chuvas de setembro e com ela a lama podre arrasando minha rua e nossas casas. As tristezas que como água de lama são difíceis de limpar. Dores que não destruíam totalmente uma pessoa, mas que uma vez surgidas, marcavam para que nada pudesse ser como antes.
Quando iniciou o desenfreio, aquele padecimento todo, eu sofri muito por ela, e por antecipação, penso que até mais que ela, pois talvez fosse provável que eu, e não ela, absolutamente,  se apercebesse da enxurrada que sobrevinha e que levaria minha amiga para um caminho estreito de insucessos e frustrações. Eu me lembro, como se fosse hoje, como tudo aquilo se sucedeu
Lilinha entrou correndo lá em casa e foi direto pra cozinha. Lá, eu lavava os pratos da janta. Era um dia de sexta feira à noite e o Jornal Nacional começava. Eu fazia minhas obrigações de filha obediente. Ela adentrou agitada querendo me contar uma coisa importante. “Tenho um segredo pra te contar!...” Embora ficasse curiosa, eu como sempre me controlava diante de Lilinha, até pra ver se o ritmo dela diminuía, mas ela estava ansiosa por demais e tinha uma cara muito sorridente e um olhar de quem tinha aprontado algo. “Aconteceu uma coisa comigo agora a pouco!” “adivinha?!” “eu fiz uma coisa...” Pedi a ela que contasse logo ou que esperasse eu acabar o serviço e a gente ia pro quarto conversar. Mas não sei o que tinha ela, que não parava de repetir a mesma coisa. Até que me disse suspeita e sorrindo”. “A palavra começa com “rela”. Lilinha saiu correndo sem me dar chance de perguntar mais nada.
Eu fiquei com aquilo na cabeça e não consegui adivinhar o que era ‘rela’. Assim, decidi ir na casa dela e saber mais detalhes, mas antes de ir, começou a cair uma chuva muito forte e logo a energia foi embora. Os relâmpagos por essa época eram ameaçadores e eu fui para o meu quartinho. Papai me deu uma vela e isolada da agitação de minha família com a chuvarada, eu não conseguia para de pensar na meia palavra chave de Lilinha.  Um relâmpago assustador ecoou e parecia querer destruir a nossa casinha. Pedi a Deus que a chuva parasse logo e que não entrasse de novo água na nossa casa. A segunda-feira passada tinha sido um trabalhão e ainda podia sentir o cheiro da lama em alguns cantos e paredes. Mas aquele relâmpago também serviu para aclarar minhas ideias e num susto decifrei o enigma de minha amiga. “Eu fiz uma coisa!” “Rela”. Eu só tinha doze anos e Lilinha também, mas eu era muito madura e uma leitorazinha voraz de livros e de tudo que me caísse nas mãos. Lilinha tinha experiência de bicho solto, sabia de coisas... logo concluí que Lilinha  teria transado com alguém e por isso estava tão agitada querendo me contar...
A revelação trazida pelo relâmpago me assustou muito e fiquei enervada. Ela só tem doze anos! Tive raiva dela e achei ao mesmo tempo chula aquela abreviação: “Rela”. “Que estúpida!” Aquela expressão vulgar rodou em minha cabeça a noite toda. “Rela” “Rela”. “Eu fiz...” “Rela”. Eu sempre achei minha amiga infantil demais, mas aquilo foi, pra mim, naquela época, a pior de todas as suas atitudes, a mais idiota. Pra que transar aos doze anos?! Eu não conseguia entender. Nunca entendi a pressa de Lilinha. A sua ânsia de vida. Se olho hoje pra aquele tempo, meu olhar se põe meigo e idealizo aquelas duas crianças. Uma tão séria e sem querer crescer, envolta nos mistérios dos livros; a outra, tonta de criancice, solta e com desejo de experimentar logo ser mulher. Me lembro que naquela noite eu não dormi.
Fui cedinho falar com ela. Lilinha me contou sem enfeites e querendo se por a mulher. “Tive relação sexual com o Robertinho”. Eu olhei bem séria pra ela e ela começou a rir e a falar. Parecia não se importar com a gravidade do ato e também demonstrava que tinha feito algo sem importância, como  pular de uma árvore, saltar um muro, cair no chão. Eu me preocupei e pedi que ela não contasse mais pra ninguém, ela podia simplesmente continuar a vida normalmente, bastava que ficasse quieta. “A gente guarda segredo”. Ela sorriu muito e disse que sim. Mas três dias depois minha mãe contou em casa que a rua toda estava comentado que a Lilinha tinha se prostituído com um dos filhos do Seu Joaquim cearense. Eu tremi e minha mãe me perguntou se eu sabia de alguma coisa. Disse à mamãe que não sabia de nada daquilo.
Mas se eu não havia contado pra ninguém o segredo de minha amiga, então ela mesma tinha espalhado. À tarde, encontrei Lilinha e ela me parecia muito convencida do feito e me disse que o pai dela ia obrigar Robertinho a se casar. Embora ele só tivesse dezessete anos, ia ter que casar com ela. Juro que foi naquele momento que vi o abismo de compreensão que havia entre mim e minha colega. Não lhe disse mais nada, nem lhe contei o quanto me decepcionava aquela história de casamento. Quando cheguei em casa eu chorei por ela. E eu sabia que tudo estava errado e não podia mudar nada.
A rua 7 estava animada com a novidade. “Doze anos e já é puta!” “essa menina nunca quis prestar!”. As colegas da rua cochichavam o que Lilinha não quisera fazer segredo. “Sabe, mermã, que ela me contou que foi assim: O Robertinho me levou pro quarto, tirou minha saia, fastou a calcinha com a  mão. Doeu um pouco e saiu sangue.” “ela disse que ele depois mandou ela ir embora logo pra mãe não desconfiar.” “Foi mermo, nossa! “Ela contou foi sorrindo!” “Lilinha é doida de pedra!”. Quanta falação, quanta conversa sobre a vida de minha amiga e foram dias e dias. Por causa disso mamãe não me deixava mais ir ver a Lilinha, eu ficava triste, mas também estava magoada por ela não ter me ouvido.
Um dia, antes de casar ela foi me ver, estava desconfiada como se tivesse feito coisa errada ou tivesse feito algo contra mim, mas, de fato, ela não, mas os adultos faziam, levando minha amiga pra longe de mim e de nossa infância. Eu a tratei bem, mas fui distante, acho até que fui fria com ela. “A gente vai morar com os pais dele...” “Você gosta dele?” “Acho que gosto...” “Não precisava nada disso”. “tua família não tem esse direito” “Eu sei, mas eu quero” “Tu é criança ainda...como eu...” Falei por fim e tive vontade de chorar.  Falei mas mudei de assunto. Meu ciúme era evidente, ela me traía com a sua idiotice de casamento. Mas ela não podia entender isso também. Eu fazia planos da gente se formar e ir morar sozinhas num apartamento. “a gente vai ser independente, Lilinha”. Mas eu me lembro bem agora, que ela não participava desse meu sonho, pois quando eu falava isso, ela ria e ficava calada, não dizia nem que sim e nem que não.
No dia do casamento, ela foi lá em casa, não sei se me ver ou se mostrar, porque ia se casar. Estava muito animada e parecia não se importar com a minha tristeza. Eu, por minha vez, resolvi ser má com ela e lhe disse: “sabe, daqui uns anos a gente vai se encontrar... tu, toda velha e acabada com seis meninos pra criar e eu, jovem, formada e dona do meu nariz” ...Lilinha sorriu, meio sem graça e não disse nada, se despediu de todos e lá se foi feliz pro seu seu casamento arranjado.
Muitos anos mais tarde, realmente encontrei ela mais ou menos assim como havia lhe dito. Parecia bem mais velha que eu. Lilinha era mãe de cinco crianças e levava uma vida incerta e difícil para criar aquelas criaturinhas. Uma delas inclusive a avó é quem criava. Lilinha foi morar numa favela no Rio de Janeiro e só vinha aqui sem os filhos, pois o dinheiro só dava pra passagem dela. A primeira  vez que nos reencontramos não foi um acontecimento muito agradável, pois foi uma conversa sem afeto ou intimidade, logo nós, que éramos tão unidas; ela me pareceu pouco a vontade e eu também não me senti motivada com sua presença de mulher sacrificada.
Fiquei olhando pra aquela mulher e tentei reencontrar minha amiguinha; não havia nada, nem alegria nem impulsividade. Apenas uma mulher entristecida e fragilizada, vítima de um passado envolto em preconceitos, inconsequências e perseguições
A fuga de Lilinha da casa dos pais, se dera um mês depois de ter largado o marido. Robertinho, imaturo e machista, logo começou a se mostrar grosseiro e mandão. Como Lilinha era muito menina e impulsiva aquilo não podia ter geito; ele tentava impor-lhe obrigações de mulher casada e para convencê-la, batia muito nela. Como na casa da família do rapaz não estava dando certo, foram morar na casa dos pais dela. Mas lá também não deu certo. O rapaz era preguiçoso e só queria viver trancado no quarto com ela. O velho Zé Sousa não gostava. “Senvergonhice dessa menina!” “E as outras pequenas vendo esses dois enrolados numa só toalha!”. Essas coisas, eu sempre ouvia de minhas colegas da rua, elas sabiam muita coisa da vida de Lilinha. Seu Zé Sousa mandou o rapaz de volta pra casa dos pais e ela ficou por lá
Os desentendimentos, as brigas e a distância deram logo um fim naquele casamento. Mas o velho queria que ela entrasse na linha e infernizava muito o juízo da menina. Não queria que ela saísse e obrigava fazer todos os serviços da casa; se encontrava o marido, Robertinho a maltratava e abusava dela. Naquele dia, o velho brigou porque Lilinha tinha saído escondida pra uma festa e quis bater nela. Não aguentando mais, ela gritou também e correu desesperada, enlouquecida e revoltada. Fugiu e foi morar numa casa de mulher da vida. A rua sete não falou de outra coisa por muito tempo. E lá em casa, ninguém podia falar mais o nome da Lilinha, nem de bem nem de mal. 
Falavam que ela era bem requisitada lá na casa, alguns homens do bairro, inclusive os velhos casados  iam pegar ela. Agora sim minha amiga tinha se perdido pra sempre de sua infância e de mim; quantas noites em claro eu pensava no que acontecia com ela. Certa vez a vi passando, indo visitar a mãe. Estava vestida com uma saia longa, blusa decotada e uma maquiagem pesada, mas eu achava que era como se ela estivesse fantasiada de mulher adulta, pois Lilinha era um tipo andrógino, sempre de cabelo curto e seios miúdos, enquanto eu já tinha corpo de mulher; odiava meus seios grandes e inchados! Mas eu a vi passando, ela também me viu mas fingiu que não e passou direto sem falar. Ficou assim muito e as colegas comentavam que ela não tinha era coragem de falar com as pessoas, eu, no entanto, sentia que no fundo era continuava na fantasia do seu mundinho e no fundo se sentia orgulhosa de toda aquela falação.
Lilinha fora vista depois na turma do Dito, saía com ele e experimentava droga. Um dia a dona do cabaré logo expulsou ela de lá. E ela voltou pra casa da mãe, depois da morte do seu Zé. “bem que ela podia se ajeitar!” “aquela lá é sem jeito!” Eu não a via muito por aquele tempo, afinal nos distanciamos definitivamente. Soube muitas histórias sobre ela, histórias escabrosas aumentadas por aquele povo maldoso e desocupado, por outro lado, eu não podia esquecer a natureza inquieta dela e compreendia que se muita coisa errada ela fazia, era tudo fruto de sua intensa paixão de viver tudo ao mesmo tempo. Saindo com e com outro, ficando dias fora de casa, saindo com homens e até com mulheres diziam, Lilinha parecia não ter limites, passava de mão-em-mão, bastavam se aproximar e oferecer droga ou dinheiro, e muitos obtiveram prazer fácil daquela menina. Ela não se importava e tirava o seu proveito. E depois de muita aprontação apareceu grávida. A mãe nem se deu ao trabalho de querer saber quem era o pai, cuidou dela na gestação e depois que o menino nasceu e passados seis meses, mandou Lilinha embora, mas sem a criança, pois queria criar o neto. A menina não se fez de rogada e foi embora mesmo. Parece que não lastimou perder o filho pra avó. Depois viajou pro Rio de Janeiro e disseram que foi fugida, porque devia a turma do tráfico e eles queriam acertar as contas com a devedora. Ficamos uns dez anos sem saber notícia dela, e todo mundo um dia parou de falar daquela vida sem freio.
Eu é que nunca a esqueci, mas se me lembro dela é como a menina moleca do passado, e me pego rindo de suas malinações e de sua vivacidade extrema; minha amiguinha correndo de bicicleta, sua agilidade, seu riso aberto e os olhos espantados, o cabelo curto, loiro e assanhado eu não consigo esquecer... penso o quanto deve ter sido feliz a ponto de, quem sabe, não haver nenhum arrepedimento, pois se alguém é feliz em criança todo o resto de vida pouco tem importância. Lilinha, eu sei, foi a menina mais feliz da rua sete.
           
           

28/10/2011

Conto 9: A deusa dos presídios

 A deusa dos presídios
      Eu não dava nada por ela. Tinha um ar de criança, aparência meiga e frágil.  Bonitazinha, morena, com um corpinho fino, sensualmente calmo. Leonelisa que eu via passar em frente a minha casa e que morava na última casa da primeira esquina da rua sete fora uma menina calada, uma adolescente calada e também seria uma mulher calada... ou misteriosa? Às vezes eu ou minha mãe ou qualquer outro vizinho que a cumprimentava recebia em troca um simples e meio sorriso como um mistério, era um risinho tímido e fraco riso com olhos baixos, erguendo-se de meio súbito, insinuando  certa tristeza ou drama de que só pobre entendia.
           Podia ser que ela esperasse ser uma pessoa invisível ou talvez quisesse sê-la, talvez porque gostasse no seu íntimo e secretamente  passar desapercebidamente de todos daquela rua de lama. Se bem que na época, ela já mocinha, a sete fosse uma ruazinha com calçamento de pedra irregular, fora-se o tempo que nossa rua era chamada de rua do grotão, a aparência era mais respeitável. As casas não eram mais germinadas e baixas, as casas cresciam e a maioria tinha portão e até carro na porta. A prefeitura tinha tomado vergonha  e resolvido por volta do ano de 1986 não calçar a rua, mas fazer o escoamento adequado pra não mais alagar. “Serviço porco!” “Serviço de merda” disseram alguns. “Verba pública gasta sem nenhuma seriedade” explicou a professora Chiquinha que naquele ano tinha voltado de São Paulo casada com o marido evangélico. Ela se convertera por amor. 
      Mas os moradores tinham razão, pois a rua sete não ficou sem alagar não. E a buraqueira foi grande naquele ano e as gentes, mulheres, jovens, velhos e crianças se queriam atravessar a rua de um lado para o outro, tinham que passar pelas tábuas compridas, eram umas cinco ou mais que os homens da obra colocaram pra todo mundo da rua e das outras pudessem transitar. Eu mesma se passava tinha muito medo, pois era pelo menos uns dez metros de profundidade que tinha sido cavado. A molecada é que gostava do perigo de passar pelas tábuas “Valei, minha nossa senhora! Um dia desses um vai cair!” Ninguém caiu. Nem mesmo o velho cabo Ciço. Quando ele passava por lá, os moradores, sentados na porta de suas casas, ficavam assistindo e morrendo de rir e uns temendo ou torcendo para o pobre pinguço cair no buracão da rua. “Cuidado, cabo Ciço!” “Olha ponte, home!” O velho cabo com toda aquela cachaça nem se apercebia da mangação do povo, seguia em frente. Vovó que gostava de lorotas dizia que ele dizia com voz de boi e assim: o boi berrar não berra, urra não urra, se atrás não vem gente quem diabo me empurra?É o grogue...a gente ria demais e ficava vendo a hora do cabo Ciço atravessar e cair, mas ele parava em frente tábua de passagem, ajeitava a coluna daquele corpo magro e comprido e maltratado de bebida e aí calculava sinalizando com a mão a reta, o velho media esqueda, direita e centro e atravessava quase na carreira e o povo gritava “la vai” “vixe, é agora!” “Eiiiiiiiiita, ele passou minha gente!”. Com a diversão terminada, o velho sumindo dentro de sua casa, logo outros assuntos iriam ocupar as mentes ociosas de quem vive sentado em porta de rua, fazer o quê? Era uma vidinha besta, mas era uma boa vidinha mesmo assim.
Mas como eu disse antes, a rua melhorou com o calçamento, na aparência, porque logo na primeira chuva de fim de ano, o povo se desesperou de novo e foi aquela tristeza e decepção, entrou tanta água nas casas, dois muros levantados, bem pouco tempo depois do trabalho da prefeitura, o muro da casa de seu Vicente e o da dona Mariinha, naquele ano foi até bem pior do que os outros anos. Os moradores logo descobriram que as rachaduras das casas ocasionadas por causa das explosões que os homens da prefeitura tinham feito pra abrir a bueira, haviam comprometido muito as estruturas, e água que entrava por cima, por baixo, agora entrava também pelas paredes rachadas e  todo mundo lastimava “essa rua num tem jeito mesmo”, “vamo processar esse prefeito” “minha gente, a culpa daquele engenheiro bosta” “hum... eu duvido que alguém se disponha a ir lá reclamar”. Seu Vicente e minha avó foram e a prefeitura veio, fez uns consertozinhos nas paredes das casas mais comprometidas e nunca mais voltaram. Assim, teve gente que vendeu a casa e foi embora.
Uns iam, mas outros queriam ficar assim mesmo porque a rua era boa e todo mundo se gostava e se conhecia... mas quem conhece quem realmente nessa vida? Vovô é quem dizia que gente é difícil de se conhecer só pela cara. “Minha netinha, a gente conhece gente decente é pelas ações!”
       E vovô tinha razão nessa leitura das gentes. A Leonelisa, aquela menina meiga do ínicio da história, talvez de santa só tivesse a cara, e chegava até ser engraçado saber que por trás daquele ar de tristinha se escondia uma mulher de desejos secretos e ações obscuras. Houve um dia que saiu por umas bocas daquela rua que Leonelisa não só fazia visitas íntimas ao antigo namorado Andrenildo lá no presídio da Major César, mas que ela era famosa também até nos presídios onde ficavam os bandidos perigosos. Quem comentou isso não se soube, mas o segredo da menina virou boato e todo mundo falava ou aumentava um pedacinho.
Essa história de Leonelisa surgiu depois que o namorado Andrenildo apareceu morto, pendurado apenas por uma corda fina de lençol velho na Major César. A rádio pião, embora suspeitasse de morte encomendada, fazia questão de contar que o rapaz não suportou saber que a Leonelisa tinha feito duas visitas íntimas nos presídios. Uma visita ela tinha feito a um antigo namorado, bandido fugido de Fortaleza e preso por aqui, assim que aprontara o primeiro assalto a uma casa lotérica na Miguel Rosa. A visita tinha sido na prisão que Andrenildo tinha ficado por quase sete anos e a outra visita ela tinha feito prum bandido recém chegado na Major César, quase no mesmo dia em que Andrenildo tinha sido  recambiado para lá. Segundo contaram, os presos que conheciam o rapaz de águas passadas, falaram que só uma coisa deixava Andrenildo desnorteado, era a lembrança dela. Ele, diziam, que estava bem e ia sair dentro de três meses, estava até feliz, mas foi só ter notícia da morena fazendo aquelas coisas com os outros e não dando a mínima pros sentimentos dele que o rapaz não suportou e fez o que fez.
A história é escabrosa. Mas era assim mesmo que o povão tava contando, exagerando ou não, aquela história da Leonelisa era muito estranha, até porque olhando pra ela, pra aquele jeitinho de quem não quer existir, não dava pra acreditar em tamanha leviandade. No entanto o passado dela era mesmo a sua condenação, pois ainda adolescente, fora enredada numa história de assalto, por ter se envolvido com um bandido perigoso. Na época, ela jurou chorando pra mãe que não sabia que aquele homem, que chegava todo arrumado, de carro Novo, era um traficante. E dava pra acreditar nela, pois afinal, era tão fechada, tímida, como iria saber se defender de um homem mal intencionado? Mesmo quando Leonelisa andou de namorico com o Andrenildo, ele era apenas um garoto e nem tinha sido preso. Mas falaram que quando ele fez o assalto ao supermercado e que teve até morte de um policial, o Jorgito; o condenado assim que desceu para a penitenciária Irmão Guido chegou a receber umas visitas de Leonelisa. Quem conheceu ele de perto, dizia que ele tinha uma paixão louca por aquela menina e que dizia pra quem quisesse ouvir que podia até ir pra cama com outras mulheres, mas que amor mesmo só por ela; o que ele sentia era veneração, muita paixão  e que não tinha cura. Intrigante certas almas gêmeas. Andrenildo se parecia com a sua amada: não gostava de muitas amizades, era muito calado, cheio de mistérios com a família. A mãe e as tias achavam ele muito ingênuo. Aquele jeitinho calmo, quase parado, o olhar tristonho, a fala meio boba e o olhar sempre cabisbaixo, enganavam bem. 
Aprontou muito e com menos de 17 já estava na prisão. A mãe que tinha meios fez de um tudo pra tirar ele de lá. “Tadinho, desse menino, aí preso!” “Só faz isso, por causa das más companhias...” falavam as tias. Andrenildo fazia bem o papel de coitado. Mas aquele menino era uma mente sagaz e com disposição para muita coisa ruim. De pequeno já aprontava. Roubava, usava drogas e a família sempre achava que o coitadinho tinha problema. “O bichim foi criado sem pai...”. A segunda prisão do rapaz, resultou em muita tristeza pra família dele, tanto porque pagava os feitos ruins do passado acobertados pela mãe, tanto pelo fato de que aquela prisão era uma injustiça contra o rapaz. Quem leu os autos do processo afirmava que ele ia pagar por um crime que não tinha cometido. A sentença condenatória deu a ele 25 anos de pena e ele ficou mais tempo que qualquer outro preso ficaria. Andrenildo seria solto, após ficar mais de 15 anos preso, uma parte da sentença ele pagou na Irmão Guido, e outra na Major Cezar. E quando ia finalmente ficar livre, o dito se deu. Os agentes encontraram e entregaram pra irmã dele uma carta e uns livros de auto-ajuda e poesias. A carta tinha sido escrito um mês antes e falava de despedida e de solidão. Em um dos livros o nome dela aparecia em várias páginas riscadas por ele, era um endeusamento, uma obsessão, uma loucura de dar pena e no livro de poesia, ele circulava e grifava passagens sobre uma mulher idealizada, um anjo de beleza que o induzia e seduzia.
A morte de Andrenildo ficou sem resposta e a polícia pouco tinha interesse no caso. A irmã bem que tentou descobrir algo, mas as histórias contadas e recontadas pelos presos e agentes não davam pistas do que realmente acontecera, pairava mesmo um mistério, o nebuloso de tanto “disse me disse” se perpetuou.
Misteriosa mesmo foi a ação de Leonelisa. Todos na rua se espantaram e comentaram que a moça só sendo muito da ruim. Como é que um antigo namorado morria, um rapaz extremamente apaixonado por anos e ela sequer esboçou o menor gesto de dor ou pena pelo acontecido, sequer visitou a mãe, a irmã do rapaz. Leonelisa não foi ao enterro e nem uma missa rezou.
A face da deusa se antes era obscura, revelar-se-ia, com a morte de Andrenildo, uma face de frieza e ausência de compaixão; mas poderia ser que ela escondesse bem no fundo de sua alma de mulher alguma tristeza, talvez ela tenha sofrido e apenas entendia, no seu egoísmo íntimo, que ninguém tinha nada a ver com isso.
 Agora quem conversou com ela disse que Leonelisa nem parecia que conhecera um dia o Andrenildo e que sentira alguma paixão por ele. Não quis comentar o fato.  "Águas passadas" disseram. Um dia a vi passando solitária e muito estranha como sempre, e senti um não sei o quê súbito, logo que ela repetiu o velho hábito: seus olhos baixos se ergueram, mas muito mais que num relance, um olhar abrupto e dessa vez sem nenhum meio riso triste; Leonisa olhou sem alma, sem vida, uma morta. Então olhei-a inteira e talvez a tenha visto bem mais que alguém pudesse vê-la em cem anos e não era mais a forma da menina, da deusa meiga e serena, nada havia naquela mulher, que embora, ainda jovem, mais parecesse uma velha ressequida, muito magra que o craque consumia e seu sorriso não existiu naquele relance, se existira era lá atrás, nas lembranças do passado.
 Certa vez contei a um amigo dentista a história de Leonelisa e Andrenildo e ele achou tudo interessante, como de fato fora. Não esqueço o que disse sobre a última aparição da moça, que o olhar sempre para baixo é que somente enxergava a si e o submundo, como a igualar-se; sim; ou seu olhar de profana não saberia enxergar o outro, e impotente apenas via a sujeira e a imundície das ruas lamacentas a lhe oferecer ilusões, amarguras, daí não mais nenhum riso  nem meio riso.  


22/10/2009

Conto 8: O Dito

O Dito
Não era o menino que consumia a droga, era ela silenciosa e faminta que o devorava. No começo, pouco a pouco, e mais tarde, voraz. A droga  o seduzia, mas ia naturalmente cobrando o preço do seu amado possuidor, e ela o prendeu em seus braços de morte, desfigurando o corpo, a mente e alma do Dito. A família no inicio assustada e envergonhada, queria, como se pudesse, esconder dos vizinhos aquilo tudo.
 Uns tinham pena e a maioria esganiçava cruel a pouca sorte do garoto. Nos anos que se seguiram, a mãe e os irmãos somente assistiram passivos, piedosos e sem compreender o que era o ser humano, quando se imagina chegar no fim da linha. Ele roubava, fugia de casa, agredia, se mantinha constantemente em confusão, era preso. Na cadeia era espancado toda vez que ia para lá, os policiais comiam fogo com ele, por isso não tinham pena. Seu Rodrigo, policial da vizinhança, disse uma vez que ele parecia um cão danado, “esse aí tem parte com o demo” “é raivoso demais”. “É corpo dominado pelo mal”.
Nos festejos de São João no ano de 1985, ele roubou um relógio e a carteira de um homem de um bairro vizinho que viera com a família se divertir.  Não agrediu nem disse mal, mas não teve pena dos apelos do homem e roubou como relatou a um vizinho. Dito, como os demais metidos com o crime, não gostava de roubar a vizinhança, “aqui a gente protege os nosso”, no entanto era impiedoso com pessoas estranhas visitando o trecho. Mas aquela vítima tinha meios, ou melhor, amigos na polícia e não foi difícil chegar nele. Pegaram Dito na parte de cima da rua 7. Ele que já era familiarizado com uma turma chegada na ilegalidade, estava muito a vontade com grana no bolso e baseado. A polícia não conversou muito não, pegou e prendeu. Soubemos depois que bateram muito nele, que lhe quebraram as costelas e uns dentes.
Não sei explicar porque não esqueci nunca do Dito menino, eu achava ele um garoto diferente. Eu era muito menina, mas mesmo assim estava sempre no meio dos grandes. Um dia de noite, lá em casa, estávamos sentados em volta da mesa de jantar brincando de jogo e foi em um dado momento que olhei pro Dito e vi algo incomum nele, achei-o grande e forte e imaginei que um dia ia namorar com ele.
Dito fora realmente um jovem bonito que a droga sucumbiu. Ainda com 12 anos, tinha jeito de homem grande. Anita, filha de dona Nicéia, bem o conhecera na cama. Se encantou com Dito depois de vê-lo feito um galo de briga derrubar  com uma rasteira de capoeira o Necão da Vermelha, indivíduo violento e cheio de confusão. Dito humilhou o outro com a rasteira e foi por causa de um xingamento. Lá na festa,  ela viu nele algo que só avistou no finado marido vivo. Mas o que ela ouviu na festa sobre o Dito foi que lhe atiçou os sentidos. “Esse aí tem encosto de cangaceiro” “tem coragem de homem feito, o moleque” Anita, mais tarde, no final da festa, meio embriagada de rum, aproximou-se sedenta e provocou que se quisesse fazia dele homem de verdade, mas que ele tinha que ser esperto pra pular a cerca do quintal de sua casa e entrar pela janela. Dito riu e disse que ia sim e que Anita ia ver se não tinha tamanho de homem. Fizeram amor até às seis da manhã. O menino tinha um fogo que cause matou o dela naquela madrugada. Anos mais tarde, Anita confidenciou a minha irmã que dormiu com Dito pelo menos umas dez vezes. Anita não se importava de falar as coisas na frente de crianças, talvez achasse que não entenderíamos, mas eu que parecia distraída, gostava era de ouvir aquelas estórias meio que de segredo, ainda mais se fosse estória sobre o Dito. Contou que só largou dele, porque a droga que se apossava mansa foi tomando conta de tudo na vida dele. Uma vez confidenciou achando vantagem que num dia de muita chuva e trovoada, ele bateu na sua janela, foram para o quintal, ficaram nus, fizeram amor apoiados no giral de dona Nicéa, e que a chuva estava muito forte e fazia muito barulho, e que ninguém da casa podia ouvir os gritos e gemidos por causa da tempestade, contou ainda que ele segurava pelos cabelos dela com força. “Ele me olhava com aqueles olhos escuros e famintos de desejo” “Aproveitei, mermã” “Dito é homem mesmo!
Quando Anita ficou grávida de novo, a mãe xingou muito a falta de juízo, quis saber quem era o traste com quem ela havia dormido, mas ela não revelou pra ninguém, só as colegas sabiam que era o menino Dito. Dona Nicéia teve que criar dois moleques, um loirinho meio sarará e o moreninho com cara de índio. Por muito tempo, achei que Anita era apaixonada pelo Dito, até que ouvi minha irmã falar pra ela ajudar ele, que talvez assim largava o vício, mas ela foi taxativa: “esse tá é sem jeito” “E eu vou é caçar home de verdade que sustente  meus menino”. Por qual boca ela disse aquilo? Não é que o Dito se afundou mesmo, um caso muito difícil, eu o vi muitas vezes, já rapaz, sendo preso e apanhando da polícia. Anita foi embora, quando se casou com um homem mais velho que ela e foi com ele e os filhos morar no norte do país, foi morar em Marabá, no Pará.
O afundamento do Dito foi ligeiro. Ele se distanciava de nós todos. Muita gente falava mal dele e eu não compreendia direito tanta falação. A rua 7 que alguns alcunhava de “rua do grotão” fazia de desafortunados como o Dito alvo de escárnio e fofoca. Nesses momentos minha rua era apenas a boca de lobo hostil e fedorenta que devorava meninos incautos.
Dona Dulcinha, mãe do Dito, vivia acabada e os irmãos eram só silêncio e vergonha.  O sofrimento dela aumentou quando o filho mais velho dela, Dioderso, morreu vítima de atropelamento de caminhão no cruzamento da Miguel Rosa com a Valter Alencar. Todo mundo da 7 correu pra olhar o pobre rapaz com os miolos espalhados na pista. Quanta lamentação foi naquele dia. Depois eu vi Dito no velório, de cabeça baixa, parecia não estar se importando muito com a morte do irmão. Mas devia só parecer, a culpa era da droga que fazia ele ficar distante até na dor da morte.
Lá em casa, minha mãe sempre tratou o Dito bem, nunca disse nada com ele, Dito ia muito lá brincar com meus irmãos mais velhos; só que com a situação dele piorando mamãe pediu pros meus irmãos ir aos poucos deixando de andar com ele e com os outros meninos que estavam metidos no fumo na outra rua. “Trate bem, porque são amigos de infância, mas nada de sair junto”. Dito não tinha mal coração e penso que entendeu que não podia ser o que era e continuar no meio da molecada. “Laranja podre não tem de ficar no cesto”. Ele aos poucos desapareceu da rua e quando ouvíamos algo sobre ele era no jornal, em outros tempos, o vi  no programa do Carlos Feitosa. Dito estava acabado, feio, abatido e consumido de droga. Eu não sei porque sentia meu coração angustiado, quando minha mãe vinha contar algo ruim que tinha acontecido. Até hoje sinto esse aperto ao falar do Dito, ele com aquela alma boa e gentil como podia afundar assim. Se volto no tempo, tenho a imagem do menino sadio e forte que era para depois ver o homem velho e destruído do presente.
            Mas mesmo dentro do vício, ele conseguiu manter uma vida paralela em família. Casou com a Ângela, o que ninguém nunca entendeu como podia uma moça meiga e bonita como ela ter coragem de casar com o Dito. Viveu mais ou menos uns vinte anos com ele e testemunhou vítima e passiva o definhar dele. Nunca conversei com ela, apenas a cumprimentava quando aparecia na rua. Mas minha mãe fez amizade e relatava o sofrimento da moça e como ela era paciente e suportava a vida dura que tinha com ele. Eu, por minha vez, achava ela muito estranha, via nela uma energia que não sabia distinguir, se era força ou apenas passividade. Houve um tempo que eles moraram na rua 7 numa casa bem pequena de aluguel, uma depois da casa de minha mãe. Muitas vezes, ele quebrava tudo, drogado e enlouquecido, gritava, mas não se escutava nada da parte dela. A viatura chegava, levava preso e dois dias depois ele voltava e viviam de novo. Ângela e Dito tiveram três crianças, todos muito parecidos com ele, e ela contrastava de sua sofrida família, era muito branca e pálida, com aquele cabelo claro, comprido e desarrumado.
            Dito envelheceu rápido. Ficou quase decrépito. Aquela força que o fizera viril quando jovem foi se apagando. Como se a vida não tivesse tido nenhuma pena nem do menino bonito e alegre e nem do jovem inquieto e eufórico. Dito, ainda aos trinta e cinco anos, mais parecia um velho maltratado com mais de sessenta. Magro e desdentado, mancando de uma perna, ocasionado por um corte de facão em uma de suas muitas confusões de juventude. Ele de vez em quando aparece na casa de minha mãe, faz uns serviços, pede ajuda, almoça. Eu converso com ele se estou por lá e tenho curiosidade de perceber algum resquício daquele menino de antes, que marcou minha memória de criança. Não vejo nada. Nem mesmo uma pequena fagulha. O seu passo manco, a sua voz de velho embriagado e seu olhar triste e cabisbaixo se perpetuam. Outro dia, disse com lágrimas nos olhos, que Ângela tinha mandado ele embora e que estava vivendo de favor num quartinho de fundo, na casa da mãe. Não consegui ter pena dele. Só vejo um homem vítima de sua própria insanidade e rebeldia. Penso no alivio de Ângela por ter se libertado de tanto sofrimento.
Mas de uma hora pra outra, Dito começou a parar de fumar e de usar qualquer outro tipo de droga, os vizinhos contaram admirados. Nele não há mais o que devorar definitivamente? Até outro dia só bebia até cair, dizendo que era por causa da mulher.  De repente, parou também com a cachaça da venda do Nezin.  Acorda cedo e vai trabalhar e o povo comenta sempre dele. “Os isprito ruim cansaram do infeliz”.
                             

21/08/2009

Conto 5: Naldo no espelho

Naldo no espelho
Quando Naldo chegou na rua, a mulherada ficou agitada. Aquele jovem alto, de aparência viril e ar de menino era uma novidade boa demais pra ser verdade. Ele viera trazido por aquela família maranhense que, provavelmente, desconhecia os perigos dos tempos de chuva da rua 7. Ali naquela época, alguém só comprava casa desavisadamente, achando que tinha feito excelente negócio. Alguns moradores antigos da rua até achavam graça, vingança de pobre é rir da desgraça alheia, que é a sua própria. “Mais um pra se alagar”. Se soubessem teriam mesmo comprado a casa da D. Totonha? O velho Luís mesmo teve muita raiva quando descobriu o mal feito. Assim que as primeiras chuvas vieram, foi logo arrasando com tudo que eles tinham trazido, a mulher xingou muito o marido e maldisse a sorte de ir morar naquele buraco, “Um grotão!” Diziam que ela queria ser muita coisa, “loira daquele jeito” “os filhos bem bonitos, tinha que ser mesmo”. Eu me lembro bem dela, uma senhora enérgica, mas carinhosa, alegre. Ia sempre brincar com suas filhas na casa dela. Quando o velho Luís morreu de cirrose, assim que pôde vendeu a casa e foi morar na zona leste. Mas aquela chuva de estréia deles foi logo que terminou a reforma da casa, aquela chuvarada, muito comum pelos meses de setembro e outubro. Foi uma alagação daquelas de derrubar muro, arrancar porta, um prejuízo de dar dó, as pessoas que não tinham as portas arrebentadas ficavam ilhadas em suas próprias casas. A chuva derramava um berreiro sem fim e em pouco tempo chegava até a avenida Valter Alencar. Nessa hora o povo da rua se enervava, outros faziam molecagem da própria miséria e falta de sorte:
A sete é uma piscina, minha gente!...”
Valei-me, minha Nossa senhora!...
Eita, diacho, que hoje eu nado...
Te aquieta, menino do cão, num tá vendo quessa água é só lama de merda e óleo das rua de cima!...”
“Vamo rezar, minha gente, vamo rezar... pra ver se São Pedro tem pena...”
Seu Zé, Me ajude aqui, homem de Deus...!
Ô, minhas panelas...meus pratos tudo!!!...”
“A parede da casa da D.Chica caiu, vixeee...”
“Acudam a mulher, meu povo,... e as crianças tudo pequenininhas! ...”
“Eiiiiiiiiiiita, agora é que ficou bão, sem luz!...”
“Mãe, pai, tô cum medo...”
“home num tem medo, deixe de ser abestado, hum!”
O pai do Naldo, quando chegou a sua vez do batismo da lama da chuva, muito indignado disse que se soubesse a verdade nunca teria comprado. Sei não... o próprio marido de D. Ilza, o finado Luis, havia adquirido aquela casa assim, meio que por engano. Melhor dizendo: querendo se enganar, e comprou e reformou. Ficou bonita e era uma das melhores casas dali. E foi assim que os novos inquilinos chegaram a nossa rua. Compraram e também reformaram. A casa branca ficou mais alta e ganhou uma pintura na frente alaranjada com porta e janela verdes. Era uma família do interior e com certa condição. Cinco rapazes e quatro moças. Dentre eles, o primogênito chamava atenção pelo porte, a pele morena clara e músculos de rapaz de academia. Eu mesma prestei atenção naquele jovem mais velho que eu. Ele passava sempre de manhã em frente a minha casa, ia comprar cigarro. Tinha um caminhar acelerado, trazia a cabeça sempre baixa e não cumprimentava ninguém. Quando retornava, trazia cigarro no bico e dava baforadas repetidamente. Por muito tempo eu e minhas colegas pensamos que ele era metido. “Só quer ser, né, mermã!”. Apesar de olhá-lo de vez quando, eu acabei tirando o sentido dele e por um certo tempo eu não o vi mais. Nessa época já trabalhava pra ajudar em casa, tinha uma vida agitada. Também foi por essa época que fui embora pra serra dos Carajás, fazer um estágio.
Um anos depois, já de volta e morando na casa de vovó, de dentro da casa, eu revi o Naldo, sentado na calçada da própria casa, parecia muito distraído e distante. Saí. Naldo se olhava num espelho pequeno e não se importava com a minha presença do outro lado e nem das pessoas que passavam e olhavam para ele. “Que rapaz narcisista”. Pensei e entrei. No dia seguinte, eu pude vê-lo de novo na mesma posição. O espelho, ele se olhando e o ar distante..., o espelho era outro, baratinho, talvez comprado no mercadinho do Quilé, de moldura retangular e alaranjada. E não é que numa manhã de sábado e calor, em que me encontrava sozinha em casa de vovó, distraída lendo Gabriel García Marques, o Naldo me aparece do nada, do meu lado esquerdo, a voz próxima e um pouco acima da minha cabeça me sobressaltou.
Lílhiiiia...” Ergui o olhar e, diante de mim, estava aquele homenzarrão apenas de calção, sem camisa e um aspecto de abandono e susto.
“...Tudo bem...” tentei parecer calma”
“... Lilhiiia, Lilhiia... moça de fibra...”
Naldo falava assim querendo ser suave, arrastado e ao mesmo tempo parecendo temer ser surpreendido por alguém ou alguma coisa. Por minha vez, fiquei sem reação, nem podia imaginar que ele sabia o meu nome e balançava afirmativamente pra ele, tentando entender o que ele fazia ali e o que pretendia.
Lilhia, posso... te pedir uma coisa...”
“Claro...fala...”
“Tu fuuuma?... (não, respondi, meneando negativamente a cabeça), tu me dá um trocadinhoo... depois eu devolvo...”
Me levantei apressada, fui até o quarto e lhe entreguei uns trocados, ele agradeceu e foi embora. À noite, depois de narrar o acontecido, minha avó disparou:
Esse rapaz, coitado, é doido! Tava internado no Areolino. Voltou tá com duas semanas.” E foi assim que meu jovem narciso me foi apresentado. Achei graça de mim mesma e de tudo que havia pensado sobre ele. Aos poucos pude entender o drama no qual vivia mergulhado. Dois dias depois daquele incidente, falei com uma irmã de Naldo, a Geisa, para saber mais sobre ele e ela me contou que a mania do espelho era um dos primeiros sinais que alguma coisa não ia bem com ele, além do fato de que ia ficando calado pelos cantos e também agressivo. Batia nos irmãos e com o avanço dos anos passou a estranhar o pai, desconhecendo-o a ponto de agredi-lo. Mas tomando os remédios, fazendo o tratamento direitinho, ficava bem.
Eu e Naldo nos tornamos próximos naquele verão, a gente conversava. Naldo ia lá pra casa, só de calção e cigarro aceso, acho que ele se sentia bem na minha companhia. Talvez porque o tratasse naturalmente e falasse sobre o que acontecia com ele sem medo de que ele ficasse magoado. Mas sempre vivi intrigada com seu jeito de falar, baixinho, arrastado e preocupado, pois parecia de propósito, mas não era. Certa vez, ele estava lá comigo na mesa, eu lia jornal, ele tinha entrado como de costume, sem se fazer perceber, ao dar por sua presença, parei de ler. Naquela manhã de agosto, Naldo estava muito quieto e me olhava de um jeito triste e perguntei como ele se sentia.
“Ela... ta vindo de novo...sabe, Lílhia”
“Explica pra mim, como é isso...vai...”
“Eu ouço uma voz... me dizendo umas coisas esquisitas... depois aquelas imagens escuras chegam, fico com medo... parece uma coisa assim bem feia ...uma coisa esquisita, sabe... de noite é pior... eu não durmo...”
“O que ela te diz?”
“Num sei...não me lembro direito...”
Percebi que na verdade não queria me contar, talvez não se sentisse completamente a vontade pra me contar tudo e eu respeitava e não forçava nada. Naldo, então caia em seu mutismo e saía logo em seguida. Naquele dia não parei de pensar no que ele me disse e quando fui no centro comprei um caderno de desenho grande, um lápis e umas coleções. Falei pra ele que era pra tentar colocar no papel e me mostrar depois, pois eu queria entender mais tudo aquilo que acontecia com ele. Por aquela época eu tinha assistido um documentário sobre o Arthur Bispo do Rosário e achava, cheia de fé, que o Naldo poderia também expressar as perturbações de sua alma como o artista do manicômio de Juliano Moreira. Eu entreguei tudo pra ele e esperei uns dias pra lhe perguntar se havia feito algo.
No dia em que dei os presentes houve alegria e surpresa da parte dele, mas o feito não provocou nenhuma reação em Naldo, ao contrário. Dias depois ele me disse que não conseguia escrever nem desenhar e não quis muita conversa comigo. Algum tempo depois, Naldo ficou completamente perturbado, sua irmã me contou cheia de pena dele os últimos acontecimentos. A polícia foi chamada mais o pessoal do manicômio pra levar ele, estava muito agressivo. A força de Naldo aumentava muito, era preciso vários homens pra segurá-lo. Daquela vez porém, foi impossível. Na luta corporal, ele escapou e correu. Disseram que ambulância e viatura policial não foram capazes de alcançá-lo, ou talvez apenas tenham seguido ele sem querer assustá-lo. Naldo correu e correu o dia inteiro, descalço e sem camisa. No fim da tarde, algumas pessoas  disseram tê-lo visto lá na vila do Poti. E os pescadores afirmaram eufóricos que viram um vulto de homem suspenso e paralisado parecendo olhar-se sob a tênue linha divisória das águas encontradas dos dois rios.

09/06/2009

Conto 4: O estranho

O Estranho
Eu me sento todo dia aqui na porta da minha casa de noite e fico olhando o céu escuro. Eu gosto de ficar assim por horas, enquanto os pensamentos transbordam e me levam na enxurrada da imaginação. A rua, o coaxar dos sapos, o cheiro ruim de lama podre, a menina pulando, brincando, gritando e os namoricos de todo dia da vizinha da frente, as pessoas que passam toda hora... mas a música alta e ordinária da vizinha bêbada aos poucos vai sumindo, perdendo a realidade de mim. O que vejo são mistérios e não sou a adolescente e não vivo ali. Em que momento deixei de ver a rua e vi do quarto o homem que me olhava da escuridão? Eu sinto grande excitação e desejo segui-lo. Já estou de pé e ando firmemente para encontrá-lo. Seus passos pesados são rápidos distantes, mas não ao ponto de perder-se de vista. Às vezes, para e olha para trás, talvez, certificando-se de que a mocinha permanece encantada. Algum medo me sobressalta: pra onde vai o estranho? O que pretende? Por que me atrai? Penso em retornar para casa, mas a rua se perdeu e da escuridão só vislumbro uma luz à frente pra onde segue meu estranho. Um poder que me envolve e não me deixa pensar que posso correr perigo. Meu corpo reage para segui-lo, os seios se intumescem como se houvessem leite nele, minha boca tem sede e sinto meu sexo quente e rápido, eu estico os braços mesmo sabendo que não posso alcançá-lo, o coração bate em pancadas desenfreadas e tenho um buraco no estômago, a pupila dilatada na escuridão da noite busca enxergar bem o meu estranho. E o pensamento é um só: EU QUERO FICAR COM ELE. Não existe o menor cansaço na busca. Ele se volta e olha mais uma vez para mim, como se precisasse de aproximação maior, são poucos passos, mas ele abre um porta e desaparece por ela. Eu vou até lá. E tenho um momento de hesitação... pressinto uma faca rasgando abaixo do meu umbigo e subindo até minha garganta, eu não devo temer, aquele homem é um perigo excitante... Adentro e um novo ambiente se forma em meus olhos. Há luz uma luz fosca em que parece enxergo menos que o que podia na escuridão da rua.
Portas imensas surgem na minha frente e preciso escolher uma para entrar. Fecho os olhos, vou caminhando, passos lentos e respiração quase sob controle. Depois da porta escolhida há outra porta, parece maior e mais pesada. Passo por essa outra, passo por outra pesada tenebrosa em seu rangido. Preciso encontrar o homem vestido de capa preta para... não sei bem o quê... Por uns instantes não sei se sou caçadora ou apenas caça.
Uma música saída de um corredor frio e escuro esvai meus pensamentos. Que importa os riscos! ...Ah, a música! Agora está alta, tem energia e vem de um piano! Ela ecoa e posso gritar que ninguém me escuta ali. É quando eu o vejo de costas para mim, alheio em sua arte fúnebre, enquanto eu aprecio aquele momento estranho em minha vida, sinto que sou tocada como um aliciamento, meu corpo freme, as mãos deslizam, as pernas se afastam e fecho calmamente os olhos... a música do meu estranho alterna violência e calma e intensidade de som, enquanto os joelhos se dobram e o corpo devagar, leve, encontra o chão, eu não sinto a frieza do piso velho e úmido, sinto os dedos entrando na carne quente como se outro ser fora de mim estivesse. Ah, que mistura frenética eu começo a mergulhar, é um instante violento em que lanço meu grito imersa na ausência do medo e de tudo. Então paro. Eu paro. E adormeço...
Depois não havia mais perigo naquele prazer, só uma leve calma e rio percebendo que meu estranho de capa preta desapareceu com sua música na noite.

28/05/2009

Conto 3

Um certo amigo

Ele foi o meu melhor amigo de infância, talvez fosse o único naquele período. Meus dias de mundo silencioso eram longos e aquele amiguinho me fazia bem. Estava por onde eu estivesse e enchia a minha cabecinha de idéias, coisas que eu sozinha não teria capacidade. Como eu me lembro dele agora...Wilker era o seu nome? Talvez. Mas é esse nome que ressoa no longínquo espaço da memória... W..i..l..k..e..r... a imagem que me vem dele é de um homenzinho de voz forte, parecendo muito confiante de si. Por outro lado, acho que ele também era muito brincalhão e companheiro, só que tinha vezes que ele era irônico comigo e também outras vezes, enérgico, mandão. Mas eu sabia entender o jeito dele. W. gostava de me proteger dos outros ou talvez de mim mesma, já que era muito boba e fraca. Eu adorava contar minhas coisas para ele, os meus segredos que nem pra minha irmã revelaria. Meu amiguinho era forte e eu era uma menina muito tímida e triste. Eu o admirava e ele ria de mim, do quanto eu era sem jeito e magrela. Um dia pude ter certeza do quanto W. era forte. Ele dizia pra mim: “a gente tem que acreditar que é capaz” e me provava. Naquele dia de manhã eu brincava com a minha irmã no quintal da frente de nossa casa. Minha irmã era mais velha do que eu uns três anos. Sue era esperta e inteligente, eu queria competir com ela, mas era impossível, pois ela era melhor em tudo, eu sabia. Sue era linda e eu não. Sue era maior e eu não. Ela tinha o cabelo enorme e liso e o meu era curtinho que me fazia parecer um moleque... “tinha tanta raiva disso”. “Que menina linda” as pessoas falavam se viam Sue, enquanto eu não existia para aquelas pessoas todas. Tão elegante e formosa era Sue, que eu arregalava meus olhos vivos e escuros de tanto achar que minha irmã era tudo isso mesmo. Mas naquele dia W. me fez acreditar que eu podia ser igual ou melhor do que ela... Minha irmã mascava chicletes fazendo umas bolas grandes e mangava de mim porque eu não fazia nenhuma. Eu bem que tentava, mas o sopro era fraco, fraco.
Você não consegue, Lilinha! Duvido...
Mas logo em seguida, W. veio e me disse aquilo sobre ser capaz, eu me lembro bem que ele falou sussurrando no meu ouvido, bem baixinho. “Acredita, vai” “Vou te ajudar” “A tua bola vai ser bem grande...” Foi aí que falei pra minha irmã:
A minha bola vai ser enorme, tu vai ver só!
Então tentei. Sue não acreditou no que aconteceu. A minha bola foi se formando e crescendo. Crescendo, se enchendo de ar tanto que logo minha carinha desaparecia... eu só ouvia o W. dizer “você consegue” e via também a cara de espanto da Sue. Nunca esqueci a cara de espantada que ela fez, os olhos dela arregalaram com sinceridade e surpresa. Depois minha irmã bem que tentou, mas não conseguiu fazer uma maior. Amei meu amiguinho nesse dia, tão orgulhosa estava de ter vencido minha irmã pelo menos uma única vez.
Mas dali em diante, eu fiquei completamente dependente dele. Eu o admirava e só o que ele dizia tinha importância. Eu não podia existir sem ele naquele mundo. Eu gostava de ficar parada escutando e concordando e foi quando comecei a obedecer meu amigo pra tudo. É certo que eu percebi que W. foi ficando mandão demais, nossa amizade se resumia em eu fazer o que ele queria. Se eu não fizesse, ele ficava zangado comigo e atazanava muito. Ele era teimoso e já não parecia ser tão amigo. Pra mim, ele nem era mais um homenzinho, parecia mesmo um bichinho feio, que só queria me fazer medo e que eu não conseguia me livrar hora nenhuma. W. foi ficando forte e me dava muita ordem. “Faz isso” “Faz aquilo” “Não é pra brincar mais” “conta cem vezes” “repete de novo, sua burra”. Eu ficava muito magoada, mas obedecia, pois ele é quem me ajudava e sem ele eu era muito sozinha e sem amigos.
Quando íamos dormir, quando mamãe apagava a luz, ele inventava de me dar ordens. “te senta na rede e reza” eu com sono não queria. Mas ele era terrivelmente insistente. “te senta, vai” “agora reza três vezes”. Então rezava, mas tinha raiva dele. O que ele pensava que estava fazendo? Quem era ele afinal? Por que não me deixava em paz nem na hora de dormir? Eu não achava mais graça naquela amizade, ele me sufocava, eu não queria dar mais bola pras conversas dele, ele era feio e azedo. Mas ele era mesmo muito insistente e não ia embora. Agora, perto dele ficava quieta, calada, incomodada. W. era cínico, dizia coisas desagradáveis com sua voz esganiçada e dava umas risadinhas. Ele era um rato que queria me obrigar a falar com ele. Mas aquela falsa amizade logo teria um fim. Se eu vivia assustada, espantada com sua presença indesejável, também não queria saber mais dele. Eu tinha que me livrar dele. A oportunidade pouco tempo depois chegou.
Uma dia a caminho do Dina Soares, eu seguia com minhas colegas e resolvemos sentar pra descansar um pouco, antes da campa bater. Nós sentamos em frente a uma velha casa que parecia desabitada. Essa casa tinha calçada e uma árvore frondosa, a sombra era um bom convite para sentar e conversar lorotas. W. estava também lá, do meu lado, mas eu evitava ouvi-lo, não queria conversa com aquele verme mandão. Queria ouvir a conversa da Verinha. Ela começou a contar uma estória de meter medo, as meninas ficaram bem quietinhas e eu também. Não me lembro mais qual era a história, mas era sobre fantasmas, seres de outro mundo que faziam mal às pessoas. Enquanto minha colega contava, eu fui me desligando de sua história e fui pensando na minha própria... então foi que de repente eu olhei pro meu lado e tomei um susto. Não, não foi um susto, pois eu não gritei, não me levantei e nem saí correndo. Na verdade, nem as minhas colegas perceberam o que se passou comigo ali. Eu tive um sobressalto. Meu coração bateu acelerado e senti um oco enorme no estômago. E eu vi e nunca vou me esquecer do que vi. Meu amigo Wilker, ou melhor, meu ex-amigo não existia de fato. Ele era um fantasma, um ser criado por mim. E ele percebeu que eu tinha acabado de descobrir a verdade, pois ele foi ficando opaco, sem cor e foi sumindo, sumindo até desaparecer para sempre. A impressão que tive naquele dia, em pleno calor de uma hora da tarde é que eu o havia prendido na velha casa abandonada, eu me senti vitoriosa e dona de mim como há muito tempo não me sentia.
A campa da escola tocou e saímos correndo e gritando. As meninas gritavam porque ficaram apavoradas com as estórias da Verinha e eu gritava meio que de satisfação, alivio por ter me livrado daquele ser imaginário. Muitas vezes, por anos, passei em frente aquela casa com suas três janelas fechadas, mas passava apressada e expulsava qualquer pensamento ameaçador, até que por muito tempo me esqueci de tudo o que me aconteceu. Outro dia, passei por lá e vi que a casa mudou um pouco, mas estava fechada. Julguei que ele ainda permanece preso e sem possibilidade de voltar...

04/05/2009

Conto 2

Ferro Velho


Sempre vivi mais de uma realidade, se assim me permite chamar, mesmo com o tempo passando e eu não precisando mais ser colocada sobre a mesa. Outra realidade talvez menos palpável para uma criança do que aquela que me enchia os pés de lama. Era outro espaço no qual eu olhava com mais intensidade e menos insegurança, pois ali eu me tornava livre. Os sonhos não se desfazem simplesmente, eles são permitidos. Repentinamente meus pequeninos pés se livravam da lama da rua sete, então estavam a alguns centímetros do chão. Minhas passadas se alargavam pelo terreno plano de mato verde. Eu corria e voava alternando, e sentia um vento frio e suave impulsionando meu cabelo negro para trás, ah que sensação gostosa! Não é fácil descrever o que eu sentia, pois descobria criança aquela magia em minha volta. Tive vontade de gritar: EU POSSO VOAR! EU POSSO VOAR, VEJAM! Porém minha voz embargava, a língua ficava presa e eu só conseguia arregalar meus olhos de peteca. Lembro que Cice segurava a minha mão esquerda com força com medo de cair. Ela parecia espantada ou virava um espantalho nessa hora com seu cabelo puído, feito de lã amarelo e marrom. Cice me lembra uma bruxa nesse instante, eu a vejo rindo de forma horrorosa, apesar disso eu sei que o medo dela é o meu medo, mas não podia transparecer para não parecer fraca aos olhos de W. As artimanhas dele pra mostrar sua força, às vezes funcionava comigo. Eu o respeitava, pois reconhecia sua inteligência e habilidade pra resolver problemas difíceis. Contudo, eu podia ignorá-lo por enquanto, o meu vôo era perfeito, e não precisava pedir sua ajuda.
Saí de perto dele com minha boneca e descemos até o ferro velho do velho Deraldino. Era um bom lugar pra servir de esconderijo. Carros destruídos, amassados e a sujeira piorava com toda aquela chuva. Três dias chovendo e o ferro velho tinha aquele cheiro de xixi e cocô com ferrugem. Mas brincar no ferro velho é bom mesmo assim. Havia ali um carro de carroceria bom de subir, era o meu preferido. Um carro velho mas com uma cor vermelho vivo. Eu subia nele com dificuldade e não sei por que razão fiquei com muita vontade de pular, então pulei e Cice também sem parar, era divertido e fora do comum. Mas foi aí que o carro começou a andar e eu apavorada dei um grito e desci e sair correndo. Corri corri e não olhei pra trás. Eu não voava mais, só corria. Cheguei em casa muito espantada e desconfiada.
Onde cê tava, menina?
Brincando, mãe...

Corrri para o quarto e tive muito medo que algo de ruim pudesse ter acontecido, foi neste instante que lembrei da casa velha, feita de barro, do velho Deraldino que ficava bem próxima do local de onde estava aquele carro. E se o carro tivesse batido na casa do velho? Ela com certeza caía, pois era bem fraca. Se isso acontecesse, eu sabia, era algo muito sério o que eu tinha feito, iam descobrir a minha danação. Será que eu ia ser presa? Pensei no que minha mãe faria, me dava uma pisa de cipó verde do pé de tamarindo, que eu ia ficar arriada uns três dias pelo menos pra aprender a me comportar. E meu pai, ai que vergonha eu teria dele, ele com certeza não me batia, mas ia me olhar com seus olhos cheio de severidade, pra fazer com que eu entendesse que estava errada e pra me mostrar que ele não gosta de coisa errada. Então fiquei daquele jeito quietinha que só eu sabia ficar, quando algo me atormentava e comecei a rezar com pressa. Eu pedia pra Deus não me castigar ou pedia que não acontecesse nada com o velho Deraldino e nem com a casinha dele e eu prometia que nunca mais ia no ferro velho e que ia ser uma boa menina dali pra frente. Nessa hora o W. se aproveitava da situação e ficava me atormentando: “reza direito”, “reza três vezes”... eu fechava os olhos e tinha medo, e se viessem contar pra minha mãe e meu pai. Eu repetia a reza. “reza de novo e ao contrário, burra”. “Reza três vezes”. Ele falava com um tom ameaçador e meu medo fazia obedecer. Mas o sono aos poucos vencia tudo e eu acabava meio que livre dos meus pavores sem terminar a reza.