Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

22/10/2009

Conto 8: O Dito

O Dito
Não era o menino que consumia a droga, era ela silenciosa e faminta que o devorava. No começo, pouco a pouco, e mais tarde, voraz. A droga  o seduzia, mas ia naturalmente cobrando o preço do seu amado possuidor, e ela o prendeu em seus braços de morte, desfigurando o corpo, a mente e alma do Dito. A família no inicio assustada e envergonhada, queria, como se pudesse, esconder dos vizinhos aquilo tudo.
 Uns tinham pena e a maioria esganiçava cruel a pouca sorte do garoto. Nos anos que se seguiram, a mãe e os irmãos somente assistiram passivos, piedosos e sem compreender o que era o ser humano, quando se imagina chegar no fim da linha. Ele roubava, fugia de casa, agredia, se mantinha constantemente em confusão, era preso. Na cadeia era espancado toda vez que ia para lá, os policiais comiam fogo com ele, por isso não tinham pena. Seu Rodrigo, policial da vizinhança, disse uma vez que ele parecia um cão danado, “esse aí tem parte com o demo” “é raivoso demais”. “É corpo dominado pelo mal”.
Nos festejos de São João no ano de 1985, ele roubou um relógio e a carteira de um homem de um bairro vizinho que viera com a família se divertir.  Não agrediu nem disse mal, mas não teve pena dos apelos do homem e roubou como relatou a um vizinho. Dito, como os demais metidos com o crime, não gostava de roubar a vizinhança, “aqui a gente protege os nosso”, no entanto era impiedoso com pessoas estranhas visitando o trecho. Mas aquela vítima tinha meios, ou melhor, amigos na polícia e não foi difícil chegar nele. Pegaram Dito na parte de cima da rua 7. Ele que já era familiarizado com uma turma chegada na ilegalidade, estava muito a vontade com grana no bolso e baseado. A polícia não conversou muito não, pegou e prendeu. Soubemos depois que bateram muito nele, que lhe quebraram as costelas e uns dentes.
Não sei explicar porque não esqueci nunca do Dito menino, eu achava ele um garoto diferente. Eu era muito menina, mas mesmo assim estava sempre no meio dos grandes. Um dia de noite, lá em casa, estávamos sentados em volta da mesa de jantar brincando de jogo e foi em um dado momento que olhei pro Dito e vi algo incomum nele, achei-o grande e forte e imaginei que um dia ia namorar com ele.
Dito fora realmente um jovem bonito que a droga sucumbiu. Ainda com 12 anos, tinha jeito de homem grande. Anita, filha de dona Nicéia, bem o conhecera na cama. Se encantou com Dito depois de vê-lo feito um galo de briga derrubar  com uma rasteira de capoeira o Necão da Vermelha, indivíduo violento e cheio de confusão. Dito humilhou o outro com a rasteira e foi por causa de um xingamento. Lá na festa,  ela viu nele algo que só avistou no finado marido vivo. Mas o que ela ouviu na festa sobre o Dito foi que lhe atiçou os sentidos. “Esse aí tem encosto de cangaceiro” “tem coragem de homem feito, o moleque” Anita, mais tarde, no final da festa, meio embriagada de rum, aproximou-se sedenta e provocou que se quisesse fazia dele homem de verdade, mas que ele tinha que ser esperto pra pular a cerca do quintal de sua casa e entrar pela janela. Dito riu e disse que ia sim e que Anita ia ver se não tinha tamanho de homem. Fizeram amor até às seis da manhã. O menino tinha um fogo que cause matou o dela naquela madrugada. Anos mais tarde, Anita confidenciou a minha irmã que dormiu com Dito pelo menos umas dez vezes. Anita não se importava de falar as coisas na frente de crianças, talvez achasse que não entenderíamos, mas eu que parecia distraída, gostava era de ouvir aquelas estórias meio que de segredo, ainda mais se fosse estória sobre o Dito. Contou que só largou dele, porque a droga que se apossava mansa foi tomando conta de tudo na vida dele. Uma vez confidenciou achando vantagem que num dia de muita chuva e trovoada, ele bateu na sua janela, foram para o quintal, ficaram nus, fizeram amor apoiados no giral de dona Nicéa, e que a chuva estava muito forte e fazia muito barulho, e que ninguém da casa podia ouvir os gritos e gemidos por causa da tempestade, contou ainda que ele segurava pelos cabelos dela com força. “Ele me olhava com aqueles olhos escuros e famintos de desejo” “Aproveitei, mermã” “Dito é homem mesmo!
Quando Anita ficou grávida de novo, a mãe xingou muito a falta de juízo, quis saber quem era o traste com quem ela havia dormido, mas ela não revelou pra ninguém, só as colegas sabiam que era o menino Dito. Dona Nicéia teve que criar dois moleques, um loirinho meio sarará e o moreninho com cara de índio. Por muito tempo, achei que Anita era apaixonada pelo Dito, até que ouvi minha irmã falar pra ela ajudar ele, que talvez assim largava o vício, mas ela foi taxativa: “esse tá é sem jeito” “E eu vou é caçar home de verdade que sustente  meus menino”. Por qual boca ela disse aquilo? Não é que o Dito se afundou mesmo, um caso muito difícil, eu o vi muitas vezes, já rapaz, sendo preso e apanhando da polícia. Anita foi embora, quando se casou com um homem mais velho que ela e foi com ele e os filhos morar no norte do país, foi morar em Marabá, no Pará.
O afundamento do Dito foi ligeiro. Ele se distanciava de nós todos. Muita gente falava mal dele e eu não compreendia direito tanta falação. A rua 7 que alguns alcunhava de “rua do grotão” fazia de desafortunados como o Dito alvo de escárnio e fofoca. Nesses momentos minha rua era apenas a boca de lobo hostil e fedorenta que devorava meninos incautos.
Dona Dulcinha, mãe do Dito, vivia acabada e os irmãos eram só silêncio e vergonha.  O sofrimento dela aumentou quando o filho mais velho dela, Dioderso, morreu vítima de atropelamento de caminhão no cruzamento da Miguel Rosa com a Valter Alencar. Todo mundo da 7 correu pra olhar o pobre rapaz com os miolos espalhados na pista. Quanta lamentação foi naquele dia. Depois eu vi Dito no velório, de cabeça baixa, parecia não estar se importando muito com a morte do irmão. Mas devia só parecer, a culpa era da droga que fazia ele ficar distante até na dor da morte.
Lá em casa, minha mãe sempre tratou o Dito bem, nunca disse nada com ele, Dito ia muito lá brincar com meus irmãos mais velhos; só que com a situação dele piorando mamãe pediu pros meus irmãos ir aos poucos deixando de andar com ele e com os outros meninos que estavam metidos no fumo na outra rua. “Trate bem, porque são amigos de infância, mas nada de sair junto”. Dito não tinha mal coração e penso que entendeu que não podia ser o que era e continuar no meio da molecada. “Laranja podre não tem de ficar no cesto”. Ele aos poucos desapareceu da rua e quando ouvíamos algo sobre ele era no jornal, em outros tempos, o vi  no programa do Carlos Feitosa. Dito estava acabado, feio, abatido e consumido de droga. Eu não sei porque sentia meu coração angustiado, quando minha mãe vinha contar algo ruim que tinha acontecido. Até hoje sinto esse aperto ao falar do Dito, ele com aquela alma boa e gentil como podia afundar assim. Se volto no tempo, tenho a imagem do menino sadio e forte que era para depois ver o homem velho e destruído do presente.
            Mas mesmo dentro do vício, ele conseguiu manter uma vida paralela em família. Casou com a Ângela, o que ninguém nunca entendeu como podia uma moça meiga e bonita como ela ter coragem de casar com o Dito. Viveu mais ou menos uns vinte anos com ele e testemunhou vítima e passiva o definhar dele. Nunca conversei com ela, apenas a cumprimentava quando aparecia na rua. Mas minha mãe fez amizade e relatava o sofrimento da moça e como ela era paciente e suportava a vida dura que tinha com ele. Eu, por minha vez, achava ela muito estranha, via nela uma energia que não sabia distinguir, se era força ou apenas passividade. Houve um tempo que eles moraram na rua 7 numa casa bem pequena de aluguel, uma depois da casa de minha mãe. Muitas vezes, ele quebrava tudo, drogado e enlouquecido, gritava, mas não se escutava nada da parte dela. A viatura chegava, levava preso e dois dias depois ele voltava e viviam de novo. Ângela e Dito tiveram três crianças, todos muito parecidos com ele, e ela contrastava de sua sofrida família, era muito branca e pálida, com aquele cabelo claro, comprido e desarrumado.
            Dito envelheceu rápido. Ficou quase decrépito. Aquela força que o fizera viril quando jovem foi se apagando. Como se a vida não tivesse tido nenhuma pena nem do menino bonito e alegre e nem do jovem inquieto e eufórico. Dito, ainda aos trinta e cinco anos, mais parecia um velho maltratado com mais de sessenta. Magro e desdentado, mancando de uma perna, ocasionado por um corte de facão em uma de suas muitas confusões de juventude. Ele de vez em quando aparece na casa de minha mãe, faz uns serviços, pede ajuda, almoça. Eu converso com ele se estou por lá e tenho curiosidade de perceber algum resquício daquele menino de antes, que marcou minha memória de criança. Não vejo nada. Nem mesmo uma pequena fagulha. O seu passo manco, a sua voz de velho embriagado e seu olhar triste e cabisbaixo se perpetuam. Outro dia, disse com lágrimas nos olhos, que Ângela tinha mandado ele embora e que estava vivendo de favor num quartinho de fundo, na casa da mãe. Não consegui ter pena dele. Só vejo um homem vítima de sua própria insanidade e rebeldia. Penso no alivio de Ângela por ter se libertado de tanto sofrimento.
Mas de uma hora pra outra, Dito começou a parar de fumar e de usar qualquer outro tipo de droga, os vizinhos contaram admirados. Nele não há mais o que devorar definitivamente? Até outro dia só bebia até cair, dizendo que era por causa da mulher.  De repente, parou também com a cachaça da venda do Nezin.  Acorda cedo e vai trabalhar e o povo comenta sempre dele. “Os isprito ruim cansaram do infeliz”.
                             

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