Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

28/05/2009

Conto 3

Um certo amigo

Ele foi o meu melhor amigo de infância, talvez fosse o único naquele período. Meus dias de mundo silencioso eram longos e aquele amiguinho me fazia bem. Estava por onde eu estivesse e enchia a minha cabecinha de idéias, coisas que eu sozinha não teria capacidade. Como eu me lembro dele agora...Wilker era o seu nome? Talvez. Mas é esse nome que ressoa no longínquo espaço da memória... W..i..l..k..e..r... a imagem que me vem dele é de um homenzinho de voz forte, parecendo muito confiante de si. Por outro lado, acho que ele também era muito brincalhão e companheiro, só que tinha vezes que ele era irônico comigo e também outras vezes, enérgico, mandão. Mas eu sabia entender o jeito dele. W. gostava de me proteger dos outros ou talvez de mim mesma, já que era muito boba e fraca. Eu adorava contar minhas coisas para ele, os meus segredos que nem pra minha irmã revelaria. Meu amiguinho era forte e eu era uma menina muito tímida e triste. Eu o admirava e ele ria de mim, do quanto eu era sem jeito e magrela. Um dia pude ter certeza do quanto W. era forte. Ele dizia pra mim: “a gente tem que acreditar que é capaz” e me provava. Naquele dia de manhã eu brincava com a minha irmã no quintal da frente de nossa casa. Minha irmã era mais velha do que eu uns três anos. Sue era esperta e inteligente, eu queria competir com ela, mas era impossível, pois ela era melhor em tudo, eu sabia. Sue era linda e eu não. Sue era maior e eu não. Ela tinha o cabelo enorme e liso e o meu era curtinho que me fazia parecer um moleque... “tinha tanta raiva disso”. “Que menina linda” as pessoas falavam se viam Sue, enquanto eu não existia para aquelas pessoas todas. Tão elegante e formosa era Sue, que eu arregalava meus olhos vivos e escuros de tanto achar que minha irmã era tudo isso mesmo. Mas naquele dia W. me fez acreditar que eu podia ser igual ou melhor do que ela... Minha irmã mascava chicletes fazendo umas bolas grandes e mangava de mim porque eu não fazia nenhuma. Eu bem que tentava, mas o sopro era fraco, fraco.
Você não consegue, Lilinha! Duvido...
Mas logo em seguida, W. veio e me disse aquilo sobre ser capaz, eu me lembro bem que ele falou sussurrando no meu ouvido, bem baixinho. “Acredita, vai” “Vou te ajudar” “A tua bola vai ser bem grande...” Foi aí que falei pra minha irmã:
A minha bola vai ser enorme, tu vai ver só!
Então tentei. Sue não acreditou no que aconteceu. A minha bola foi se formando e crescendo. Crescendo, se enchendo de ar tanto que logo minha carinha desaparecia... eu só ouvia o W. dizer “você consegue” e via também a cara de espanto da Sue. Nunca esqueci a cara de espantada que ela fez, os olhos dela arregalaram com sinceridade e surpresa. Depois minha irmã bem que tentou, mas não conseguiu fazer uma maior. Amei meu amiguinho nesse dia, tão orgulhosa estava de ter vencido minha irmã pelo menos uma única vez.
Mas dali em diante, eu fiquei completamente dependente dele. Eu o admirava e só o que ele dizia tinha importância. Eu não podia existir sem ele naquele mundo. Eu gostava de ficar parada escutando e concordando e foi quando comecei a obedecer meu amigo pra tudo. É certo que eu percebi que W. foi ficando mandão demais, nossa amizade se resumia em eu fazer o que ele queria. Se eu não fizesse, ele ficava zangado comigo e atazanava muito. Ele era teimoso e já não parecia ser tão amigo. Pra mim, ele nem era mais um homenzinho, parecia mesmo um bichinho feio, que só queria me fazer medo e que eu não conseguia me livrar hora nenhuma. W. foi ficando forte e me dava muita ordem. “Faz isso” “Faz aquilo” “Não é pra brincar mais” “conta cem vezes” “repete de novo, sua burra”. Eu ficava muito magoada, mas obedecia, pois ele é quem me ajudava e sem ele eu era muito sozinha e sem amigos.
Quando íamos dormir, quando mamãe apagava a luz, ele inventava de me dar ordens. “te senta na rede e reza” eu com sono não queria. Mas ele era terrivelmente insistente. “te senta, vai” “agora reza três vezes”. Então rezava, mas tinha raiva dele. O que ele pensava que estava fazendo? Quem era ele afinal? Por que não me deixava em paz nem na hora de dormir? Eu não achava mais graça naquela amizade, ele me sufocava, eu não queria dar mais bola pras conversas dele, ele era feio e azedo. Mas ele era mesmo muito insistente e não ia embora. Agora, perto dele ficava quieta, calada, incomodada. W. era cínico, dizia coisas desagradáveis com sua voz esganiçada e dava umas risadinhas. Ele era um rato que queria me obrigar a falar com ele. Mas aquela falsa amizade logo teria um fim. Se eu vivia assustada, espantada com sua presença indesejável, também não queria saber mais dele. Eu tinha que me livrar dele. A oportunidade pouco tempo depois chegou.
Uma dia a caminho do Dina Soares, eu seguia com minhas colegas e resolvemos sentar pra descansar um pouco, antes da campa bater. Nós sentamos em frente a uma velha casa que parecia desabitada. Essa casa tinha calçada e uma árvore frondosa, a sombra era um bom convite para sentar e conversar lorotas. W. estava também lá, do meu lado, mas eu evitava ouvi-lo, não queria conversa com aquele verme mandão. Queria ouvir a conversa da Verinha. Ela começou a contar uma estória de meter medo, as meninas ficaram bem quietinhas e eu também. Não me lembro mais qual era a história, mas era sobre fantasmas, seres de outro mundo que faziam mal às pessoas. Enquanto minha colega contava, eu fui me desligando de sua história e fui pensando na minha própria... então foi que de repente eu olhei pro meu lado e tomei um susto. Não, não foi um susto, pois eu não gritei, não me levantei e nem saí correndo. Na verdade, nem as minhas colegas perceberam o que se passou comigo ali. Eu tive um sobressalto. Meu coração bateu acelerado e senti um oco enorme no estômago. E eu vi e nunca vou me esquecer do que vi. Meu amigo Wilker, ou melhor, meu ex-amigo não existia de fato. Ele era um fantasma, um ser criado por mim. E ele percebeu que eu tinha acabado de descobrir a verdade, pois ele foi ficando opaco, sem cor e foi sumindo, sumindo até desaparecer para sempre. A impressão que tive naquele dia, em pleno calor de uma hora da tarde é que eu o havia prendido na velha casa abandonada, eu me senti vitoriosa e dona de mim como há muito tempo não me sentia.
A campa da escola tocou e saímos correndo e gritando. As meninas gritavam porque ficaram apavoradas com as estórias da Verinha e eu gritava meio que de satisfação, alivio por ter me livrado daquele ser imaginário. Muitas vezes, por anos, passei em frente aquela casa com suas três janelas fechadas, mas passava apressada e expulsava qualquer pensamento ameaçador, até que por muito tempo me esqueci de tudo o que me aconteceu. Outro dia, passei por lá e vi que a casa mudou um pouco, mas estava fechada. Julguei que ele ainda permanece preso e sem possibilidade de voltar...

2 comentários:

Jucileide Abreu disse...

Contar grandes estórias em grandes espaços deve ser um grande desafio. Acho, no entanto, que desafio maior é contá-las em tão poucas linhas. Análise: texto enxuto, correto, intimista e ... muito bom. desculpe pela "análise" (ha! ha!) mania de professora de português...

Elizabeth Medeiros disse...

Valeu, Jucileide!A análise será sempre bem vinda. Volte sempre que puder...