Ferro Velho
Sempre vivi mais de uma realidade, se assim me permite chamar, mesmo com o tempo passando e eu não precisando mais ser colocada sobre a mesa. Outra realidade talvez menos palpável para uma criança do que aquela que me enchia os pés de lama. Era outro espaço no qual eu olhava com mais intensidade e menos insegurança, pois ali eu me tornava livre. Os sonhos não se desfazem simplesmente, eles são permitidos. Repentinamente meus pequeninos pés se livravam da lama da rua sete, então estavam a alguns centímetros do chão. Minhas passadas se alargavam pelo terreno plano de mato verde. Eu corria e voava alternando, e sentia um vento frio e suave impulsionando meu cabelo negro para trás, ah que sensação gostosa! Não é fácil descrever o que eu sentia, pois descobria criança aquela magia em minha volta. Tive vontade de gritar: EU POSSO VOAR! EU POSSO VOAR, VEJAM! Porém minha voz embargava, a língua ficava presa e eu só conseguia arregalar meus olhos de peteca. Lembro que Cice segurava a minha mão esquerda com força com medo de cair. Ela parecia espantada ou virava um espantalho nessa hora com seu cabelo puído, feito de lã amarelo e marrom. Cice me lembra uma bruxa nesse instante, eu a vejo rindo de forma horrorosa, apesar disso eu sei que o medo dela é o meu medo, mas não podia transparecer para não parecer fraca aos olhos de W. As artimanhas dele pra mostrar sua força, às vezes funcionava comigo. Eu o respeitava, pois reconhecia sua inteligência e habilidade pra resolver problemas difíceis. Contudo, eu podia ignorá-lo por enquanto, o meu vôo era perfeito, e não precisava pedir sua ajuda.
Saí de perto dele com minha boneca e descemos até o ferro velho do velho Deraldino. Era um bom lugar pra servir de esconderijo. Carros destruídos, amassados e a sujeira piorava com toda aquela chuva. Três dias chovendo e o ferro velho tinha aquele cheiro de xixi e cocô com ferrugem. Mas brincar no ferro velho é bom mesmo assim. Havia ali um carro de carroceria bom de subir, era o meu preferido. Um carro velho mas com uma cor vermelho vivo. Eu subia nele com dificuldade e não sei por que razão fiquei com muita vontade de pular, então pulei e Cice também sem parar, era divertido e fora do comum. Mas foi aí que o carro começou a andar e eu apavorada dei um grito e desci e sair correndo. Corri corri e não olhei pra trás. Eu não voava mais, só corria. Cheguei em casa muito espantada e desconfiada.
Onde cê tava, menina?
Brincando, mãe...
Corrri para o quarto e tive muito medo que algo de ruim pudesse ter acontecido, foi neste instante que lembrei da casa velha, feita de barro, do velho Deraldino que ficava bem próxima do local de onde estava aquele carro. E se o carro tivesse batido na casa do velho? Ela com certeza caía, pois era bem fraca. Se isso acontecesse, eu sabia, era algo muito sério o que eu tinha feito, iam descobrir a minha danação. Será que eu ia ser presa? Pensei no que minha mãe faria, me dava uma pisa de cipó verde do pé de tamarindo, que eu ia ficar arriada uns três dias pelo menos pra aprender a me comportar. E meu pai, ai que vergonha eu teria dele, ele com certeza não me batia, mas ia me olhar com seus olhos cheio de severidade, pra fazer com que eu entendesse que estava errada e pra me mostrar que ele não gosta de coisa errada. Então fiquei daquele jeito quietinha que só eu sabia ficar, quando algo me atormentava e comecei a rezar com pressa. Eu pedia pra Deus não me castigar ou pedia que não acontecesse nada com o velho Deraldino e nem com a casinha dele e eu prometia que nunca mais ia no ferro velho e que ia ser uma boa menina dali pra frente. Nessa hora o W. se aproveitava da situação e ficava me atormentando: “reza direito”, “reza três vezes”... eu fechava os olhos e tinha medo, e se viessem contar pra minha mãe e meu pai. Eu repetia a reza. “reza de novo e ao contrário, burra”. “Reza três vezes”. Ele falava com um tom ameaçador e meu medo fazia obedecer. Mas o sono aos poucos vencia tudo e eu acabava meio que livre dos meus pavores sem terminar a reza.
Onde cê tava, menina?
Brincando, mãe...
Corrri para o quarto e tive muito medo que algo de ruim pudesse ter acontecido, foi neste instante que lembrei da casa velha, feita de barro, do velho Deraldino que ficava bem próxima do local de onde estava aquele carro. E se o carro tivesse batido na casa do velho? Ela com certeza caía, pois era bem fraca. Se isso acontecesse, eu sabia, era algo muito sério o que eu tinha feito, iam descobrir a minha danação. Será que eu ia ser presa? Pensei no que minha mãe faria, me dava uma pisa de cipó verde do pé de tamarindo, que eu ia ficar arriada uns três dias pelo menos pra aprender a me comportar. E meu pai, ai que vergonha eu teria dele, ele com certeza não me batia, mas ia me olhar com seus olhos cheio de severidade, pra fazer com que eu entendesse que estava errada e pra me mostrar que ele não gosta de coisa errada. Então fiquei daquele jeito quietinha que só eu sabia ficar, quando algo me atormentava e comecei a rezar com pressa. Eu pedia pra Deus não me castigar ou pedia que não acontecesse nada com o velho Deraldino e nem com a casinha dele e eu prometia que nunca mais ia no ferro velho e que ia ser uma boa menina dali pra frente. Nessa hora o W. se aproveitava da situação e ficava me atormentando: “reza direito”, “reza três vezes”... eu fechava os olhos e tinha medo, e se viessem contar pra minha mãe e meu pai. Eu repetia a reza. “reza de novo e ao contrário, burra”. “Reza três vezes”. Ele falava com um tom ameaçador e meu medo fazia obedecer. Mas o sono aos poucos vencia tudo e eu acabava meio que livre dos meus pavores sem terminar a reza.
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