Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

28/10/2011

Conto 9: A deusa dos presídios

 A deusa dos presídios
      Eu não dava nada por ela. Tinha um ar de criança, aparência meiga e frágil.  Bonitazinha, morena, com um corpinho fino, sensualmente calmo. Leonelisa que eu via passar em frente a minha casa e que morava na última casa da primeira esquina da rua sete fora uma menina calada, uma adolescente calada e também seria uma mulher calada... ou misteriosa? Às vezes eu ou minha mãe ou qualquer outro vizinho que a cumprimentava recebia em troca um simples e meio sorriso como um mistério, era um risinho tímido e fraco riso com olhos baixos, erguendo-se de meio súbito, insinuando  certa tristeza ou drama de que só pobre entendia.
           Podia ser que ela esperasse ser uma pessoa invisível ou talvez quisesse sê-la, talvez porque gostasse no seu íntimo e secretamente  passar desapercebidamente de todos daquela rua de lama. Se bem que na época, ela já mocinha, a sete fosse uma ruazinha com calçamento de pedra irregular, fora-se o tempo que nossa rua era chamada de rua do grotão, a aparência era mais respeitável. As casas não eram mais germinadas e baixas, as casas cresciam e a maioria tinha portão e até carro na porta. A prefeitura tinha tomado vergonha  e resolvido por volta do ano de 1986 não calçar a rua, mas fazer o escoamento adequado pra não mais alagar. “Serviço porco!” “Serviço de merda” disseram alguns. “Verba pública gasta sem nenhuma seriedade” explicou a professora Chiquinha que naquele ano tinha voltado de São Paulo casada com o marido evangélico. Ela se convertera por amor. 
      Mas os moradores tinham razão, pois a rua sete não ficou sem alagar não. E a buraqueira foi grande naquele ano e as gentes, mulheres, jovens, velhos e crianças se queriam atravessar a rua de um lado para o outro, tinham que passar pelas tábuas compridas, eram umas cinco ou mais que os homens da obra colocaram pra todo mundo da rua e das outras pudessem transitar. Eu mesma se passava tinha muito medo, pois era pelo menos uns dez metros de profundidade que tinha sido cavado. A molecada é que gostava do perigo de passar pelas tábuas “Valei, minha nossa senhora! Um dia desses um vai cair!” Ninguém caiu. Nem mesmo o velho cabo Ciço. Quando ele passava por lá, os moradores, sentados na porta de suas casas, ficavam assistindo e morrendo de rir e uns temendo ou torcendo para o pobre pinguço cair no buracão da rua. “Cuidado, cabo Ciço!” “Olha ponte, home!” O velho cabo com toda aquela cachaça nem se apercebia da mangação do povo, seguia em frente. Vovó que gostava de lorotas dizia que ele dizia com voz de boi e assim: o boi berrar não berra, urra não urra, se atrás não vem gente quem diabo me empurra?É o grogue...a gente ria demais e ficava vendo a hora do cabo Ciço atravessar e cair, mas ele parava em frente tábua de passagem, ajeitava a coluna daquele corpo magro e comprido e maltratado de bebida e aí calculava sinalizando com a mão a reta, o velho media esqueda, direita e centro e atravessava quase na carreira e o povo gritava “la vai” “vixe, é agora!” “Eiiiiiiiiita, ele passou minha gente!”. Com a diversão terminada, o velho sumindo dentro de sua casa, logo outros assuntos iriam ocupar as mentes ociosas de quem vive sentado em porta de rua, fazer o quê? Era uma vidinha besta, mas era uma boa vidinha mesmo assim.
Mas como eu disse antes, a rua melhorou com o calçamento, na aparência, porque logo na primeira chuva de fim de ano, o povo se desesperou de novo e foi aquela tristeza e decepção, entrou tanta água nas casas, dois muros levantados, bem pouco tempo depois do trabalho da prefeitura, o muro da casa de seu Vicente e o da dona Mariinha, naquele ano foi até bem pior do que os outros anos. Os moradores logo descobriram que as rachaduras das casas ocasionadas por causa das explosões que os homens da prefeitura tinham feito pra abrir a bueira, haviam comprometido muito as estruturas, e água que entrava por cima, por baixo, agora entrava também pelas paredes rachadas e  todo mundo lastimava “essa rua num tem jeito mesmo”, “vamo processar esse prefeito” “minha gente, a culpa daquele engenheiro bosta” “hum... eu duvido que alguém se disponha a ir lá reclamar”. Seu Vicente e minha avó foram e a prefeitura veio, fez uns consertozinhos nas paredes das casas mais comprometidas e nunca mais voltaram. Assim, teve gente que vendeu a casa e foi embora.
Uns iam, mas outros queriam ficar assim mesmo porque a rua era boa e todo mundo se gostava e se conhecia... mas quem conhece quem realmente nessa vida? Vovô é quem dizia que gente é difícil de se conhecer só pela cara. “Minha netinha, a gente conhece gente decente é pelas ações!”
       E vovô tinha razão nessa leitura das gentes. A Leonelisa, aquela menina meiga do ínicio da história, talvez de santa só tivesse a cara, e chegava até ser engraçado saber que por trás daquele ar de tristinha se escondia uma mulher de desejos secretos e ações obscuras. Houve um dia que saiu por umas bocas daquela rua que Leonelisa não só fazia visitas íntimas ao antigo namorado Andrenildo lá no presídio da Major César, mas que ela era famosa também até nos presídios onde ficavam os bandidos perigosos. Quem comentou isso não se soube, mas o segredo da menina virou boato e todo mundo falava ou aumentava um pedacinho.
Essa história de Leonelisa surgiu depois que o namorado Andrenildo apareceu morto, pendurado apenas por uma corda fina de lençol velho na Major César. A rádio pião, embora suspeitasse de morte encomendada, fazia questão de contar que o rapaz não suportou saber que a Leonelisa tinha feito duas visitas íntimas nos presídios. Uma visita ela tinha feito a um antigo namorado, bandido fugido de Fortaleza e preso por aqui, assim que aprontara o primeiro assalto a uma casa lotérica na Miguel Rosa. A visita tinha sido na prisão que Andrenildo tinha ficado por quase sete anos e a outra visita ela tinha feito prum bandido recém chegado na Major César, quase no mesmo dia em que Andrenildo tinha sido  recambiado para lá. Segundo contaram, os presos que conheciam o rapaz de águas passadas, falaram que só uma coisa deixava Andrenildo desnorteado, era a lembrança dela. Ele, diziam, que estava bem e ia sair dentro de três meses, estava até feliz, mas foi só ter notícia da morena fazendo aquelas coisas com os outros e não dando a mínima pros sentimentos dele que o rapaz não suportou e fez o que fez.
A história é escabrosa. Mas era assim mesmo que o povão tava contando, exagerando ou não, aquela história da Leonelisa era muito estranha, até porque olhando pra ela, pra aquele jeitinho de quem não quer existir, não dava pra acreditar em tamanha leviandade. No entanto o passado dela era mesmo a sua condenação, pois ainda adolescente, fora enredada numa história de assalto, por ter se envolvido com um bandido perigoso. Na época, ela jurou chorando pra mãe que não sabia que aquele homem, que chegava todo arrumado, de carro Novo, era um traficante. E dava pra acreditar nela, pois afinal, era tão fechada, tímida, como iria saber se defender de um homem mal intencionado? Mesmo quando Leonelisa andou de namorico com o Andrenildo, ele era apenas um garoto e nem tinha sido preso. Mas falaram que quando ele fez o assalto ao supermercado e que teve até morte de um policial, o Jorgito; o condenado assim que desceu para a penitenciária Irmão Guido chegou a receber umas visitas de Leonelisa. Quem conheceu ele de perto, dizia que ele tinha uma paixão louca por aquela menina e que dizia pra quem quisesse ouvir que podia até ir pra cama com outras mulheres, mas que amor mesmo só por ela; o que ele sentia era veneração, muita paixão  e que não tinha cura. Intrigante certas almas gêmeas. Andrenildo se parecia com a sua amada: não gostava de muitas amizades, era muito calado, cheio de mistérios com a família. A mãe e as tias achavam ele muito ingênuo. Aquele jeitinho calmo, quase parado, o olhar tristonho, a fala meio boba e o olhar sempre cabisbaixo, enganavam bem. 
Aprontou muito e com menos de 17 já estava na prisão. A mãe que tinha meios fez de um tudo pra tirar ele de lá. “Tadinho, desse menino, aí preso!” “Só faz isso, por causa das más companhias...” falavam as tias. Andrenildo fazia bem o papel de coitado. Mas aquele menino era uma mente sagaz e com disposição para muita coisa ruim. De pequeno já aprontava. Roubava, usava drogas e a família sempre achava que o coitadinho tinha problema. “O bichim foi criado sem pai...”. A segunda prisão do rapaz, resultou em muita tristeza pra família dele, tanto porque pagava os feitos ruins do passado acobertados pela mãe, tanto pelo fato de que aquela prisão era uma injustiça contra o rapaz. Quem leu os autos do processo afirmava que ele ia pagar por um crime que não tinha cometido. A sentença condenatória deu a ele 25 anos de pena e ele ficou mais tempo que qualquer outro preso ficaria. Andrenildo seria solto, após ficar mais de 15 anos preso, uma parte da sentença ele pagou na Irmão Guido, e outra na Major Cezar. E quando ia finalmente ficar livre, o dito se deu. Os agentes encontraram e entregaram pra irmã dele uma carta e uns livros de auto-ajuda e poesias. A carta tinha sido escrito um mês antes e falava de despedida e de solidão. Em um dos livros o nome dela aparecia em várias páginas riscadas por ele, era um endeusamento, uma obsessão, uma loucura de dar pena e no livro de poesia, ele circulava e grifava passagens sobre uma mulher idealizada, um anjo de beleza que o induzia e seduzia.
A morte de Andrenildo ficou sem resposta e a polícia pouco tinha interesse no caso. A irmã bem que tentou descobrir algo, mas as histórias contadas e recontadas pelos presos e agentes não davam pistas do que realmente acontecera, pairava mesmo um mistério, o nebuloso de tanto “disse me disse” se perpetuou.
Misteriosa mesmo foi a ação de Leonelisa. Todos na rua se espantaram e comentaram que a moça só sendo muito da ruim. Como é que um antigo namorado morria, um rapaz extremamente apaixonado por anos e ela sequer esboçou o menor gesto de dor ou pena pelo acontecido, sequer visitou a mãe, a irmã do rapaz. Leonelisa não foi ao enterro e nem uma missa rezou.
A face da deusa se antes era obscura, revelar-se-ia, com a morte de Andrenildo, uma face de frieza e ausência de compaixão; mas poderia ser que ela escondesse bem no fundo de sua alma de mulher alguma tristeza, talvez ela tenha sofrido e apenas entendia, no seu egoísmo íntimo, que ninguém tinha nada a ver com isso.
 Agora quem conversou com ela disse que Leonelisa nem parecia que conhecera um dia o Andrenildo e que sentira alguma paixão por ele. Não quis comentar o fato.  "Águas passadas" disseram. Um dia a vi passando solitária e muito estranha como sempre, e senti um não sei o quê súbito, logo que ela repetiu o velho hábito: seus olhos baixos se ergueram, mas muito mais que num relance, um olhar abrupto e dessa vez sem nenhum meio riso triste; Leonisa olhou sem alma, sem vida, uma morta. Então olhei-a inteira e talvez a tenha visto bem mais que alguém pudesse vê-la em cem anos e não era mais a forma da menina, da deusa meiga e serena, nada havia naquela mulher, que embora, ainda jovem, mais parecesse uma velha ressequida, muito magra que o craque consumia e seu sorriso não existiu naquele relance, se existira era lá atrás, nas lembranças do passado.
 Certa vez contei a um amigo dentista a história de Leonelisa e Andrenildo e ele achou tudo interessante, como de fato fora. Não esqueço o que disse sobre a última aparição da moça, que o olhar sempre para baixo é que somente enxergava a si e o submundo, como a igualar-se; sim; ou seu olhar de profana não saberia enxergar o outro, e impotente apenas via a sujeira e a imundície das ruas lamacentas a lhe oferecer ilusões, amarguras, daí não mais nenhum riso  nem meio riso.  


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