Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

09/06/2009

Conto 4: O estranho

O Estranho
Eu me sento todo dia aqui na porta da minha casa de noite e fico olhando o céu escuro. Eu gosto de ficar assim por horas, enquanto os pensamentos transbordam e me levam na enxurrada da imaginação. A rua, o coaxar dos sapos, o cheiro ruim de lama podre, a menina pulando, brincando, gritando e os namoricos de todo dia da vizinha da frente, as pessoas que passam toda hora... mas a música alta e ordinária da vizinha bêbada aos poucos vai sumindo, perdendo a realidade de mim. O que vejo são mistérios e não sou a adolescente e não vivo ali. Em que momento deixei de ver a rua e vi do quarto o homem que me olhava da escuridão? Eu sinto grande excitação e desejo segui-lo. Já estou de pé e ando firmemente para encontrá-lo. Seus passos pesados são rápidos distantes, mas não ao ponto de perder-se de vista. Às vezes, para e olha para trás, talvez, certificando-se de que a mocinha permanece encantada. Algum medo me sobressalta: pra onde vai o estranho? O que pretende? Por que me atrai? Penso em retornar para casa, mas a rua se perdeu e da escuridão só vislumbro uma luz à frente pra onde segue meu estranho. Um poder que me envolve e não me deixa pensar que posso correr perigo. Meu corpo reage para segui-lo, os seios se intumescem como se houvessem leite nele, minha boca tem sede e sinto meu sexo quente e rápido, eu estico os braços mesmo sabendo que não posso alcançá-lo, o coração bate em pancadas desenfreadas e tenho um buraco no estômago, a pupila dilatada na escuridão da noite busca enxergar bem o meu estranho. E o pensamento é um só: EU QUERO FICAR COM ELE. Não existe o menor cansaço na busca. Ele se volta e olha mais uma vez para mim, como se precisasse de aproximação maior, são poucos passos, mas ele abre um porta e desaparece por ela. Eu vou até lá. E tenho um momento de hesitação... pressinto uma faca rasgando abaixo do meu umbigo e subindo até minha garganta, eu não devo temer, aquele homem é um perigo excitante... Adentro e um novo ambiente se forma em meus olhos. Há luz uma luz fosca em que parece enxergo menos que o que podia na escuridão da rua.
Portas imensas surgem na minha frente e preciso escolher uma para entrar. Fecho os olhos, vou caminhando, passos lentos e respiração quase sob controle. Depois da porta escolhida há outra porta, parece maior e mais pesada. Passo por essa outra, passo por outra pesada tenebrosa em seu rangido. Preciso encontrar o homem vestido de capa preta para... não sei bem o quê... Por uns instantes não sei se sou caçadora ou apenas caça.
Uma música saída de um corredor frio e escuro esvai meus pensamentos. Que importa os riscos! ...Ah, a música! Agora está alta, tem energia e vem de um piano! Ela ecoa e posso gritar que ninguém me escuta ali. É quando eu o vejo de costas para mim, alheio em sua arte fúnebre, enquanto eu aprecio aquele momento estranho em minha vida, sinto que sou tocada como um aliciamento, meu corpo freme, as mãos deslizam, as pernas se afastam e fecho calmamente os olhos... a música do meu estranho alterna violência e calma e intensidade de som, enquanto os joelhos se dobram e o corpo devagar, leve, encontra o chão, eu não sinto a frieza do piso velho e úmido, sinto os dedos entrando na carne quente como se outro ser fora de mim estivesse. Ah, que mistura frenética eu começo a mergulhar, é um instante violento em que lanço meu grito imersa na ausência do medo e de tudo. Então paro. Eu paro. E adormeço...
Depois não havia mais perigo naquele prazer, só uma leve calma e rio percebendo que meu estranho de capa preta desapareceu com sua música na noite.

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