Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

02/11/2008

Conto 1

Dia de chuva

Eu fora sentada ali por meu pai para que não pisasse na lama. A lama real escura imunda e fedorenta que eu pequenina e dispersa no mundo mágico da infância não conseguia perceber. Era uma mesa alta pra mim e meu irmãozinho menor e ali também me maravilhava aquele espaço reduzido e protetor que eu achava ser uma brincadeira. Nós dois íamos ficando apertados por causa dos objetos que minha mãe e meu pai colocavam ao nosso redor, eu logo comecei a achar a brincadeira sem graça. A água, a lama fria tocou os meus pés quando desci. E eu vi com verdade que minha casa estava diferente. E muitas vezes depois eu veria sempre, ano a ano, o desespero de minha mãe e de meu pai e meus irmãos mais velhos. O contato com a lama foi o início do contato com a realidade que tantas vezes tentei escapar e frágil em minha condição humana não era capaz de escapar. Mas o contato com a lama me retirava do mundo que eu via. Aquelas pessoas engraçadas, com suas roupas antigas. A menina Ciça, de cabelo negro amarrado com lenço azul, sempre me visitava e me contava alguma história diferente ou mesmo me orientava dizendo para não subir na árvore, pois ia cair. Havia minha boneca que se sentava no meu colo e cantava uma ou duas músicas engraçadas para que eu não ficasse triste porque não podia brincar na rua nos dias de chuva e estava doente, também me dizia pra não ter medo do meu irmão mais velho só porque ele era mais forte e gostava de bater nos pequenos. Havia meu amiguinho Wilker com quem eu fazia barquinho de papel, ele gostava de me visitar quando as meninas da rua não queriam brincar comigo, algo que não sabia entender como a infância tem essa face de exclusão. Mas W. não deixava que ficasse triste e me ensinava coisas meu amiguinho. Às vezes eu queria até apresentá-lo pra meus irmãos e irmãs e também pra minhas colegas, mas com medo de ficar sem amigo de novo não apresentava. Eu era uma menina tímida, mas não era medrosa e gostava de ficar quietinha olhando as coisas desse mundo, até que o W. e minha bonequinha me chamavam pra suas realidades e eu não fugia, topava a invasão.

2 comentários:

Vera disse...

Que continho mais fofo...

Adorei.

;-)

Elizabeth Medeiros disse...

Obrigada, continue apreciando!