Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

30/10/2011

conto 10: A face de Lilinha

A face de Lilinha

Lilinha atravessou a rua sete, em desespero, enlouquecida. Minutos antes viram-na abrindo  o portão com violência e ouviram o que o pai berrava. “Sua vagabunda!”. Uma vizinha contou que a mãe ficara impassível, talvez espantada. Lilinha atravessou a rua 7 correndo, disseram que estava louca mesmo. Os olhos esbugalhados e as mãos prendendo a cabeça como se quisesse arrancá-la do corpo. Foi embora e não mais voltou. Antes disso, meses atrás a gente tinha conversado, a gente sempre conversava e eu pedia pra ela ir com calma e não agir sem pensar. Mas Lilinha era impulsiva, agia com rapidez e emoção. Era a minha melhor amiga de infância e as pessoas nos achavam bem parecidas. Não éramos.
Eu sempre fui quieta, vivida por dentro e ensimesmada. Lilinha era uma pinga fogo, alegre, moleca e levada. Não consigo formular imagens estáticas dela, a vejo sempre saltitante, afogueada e de olhos acesos. Entre os cinco ou seis anos, ela já andava solta pela rua, só de calcinha; parecia que voava na bicicleta emprestada da vizinha. Muito  solta, vivia brincando com os meninos, se metia em brigas e confusões. Sempre aparecia lá em casa pra conversar, mas logo saia correndo pra ir na casa de outra colega ou fazer alguma danação. Eu tive  muito ciúmes dela com os outros, eu achava que ela não me dava atenção que eu merecia. Mas inquieta daquele jeito, como poderia perceber que uma menina quieta como eu podia gostar tanto dela a ponto de sentir ciúmes. Lilinha não tinha nem 11 anos e já namorava os moleques da rua. Foi ela quem primeiro beijou o Heder, o menino mais bonito da rua Sete, filho da D. Ilza. Nós duas e mais as outras éramos apaixonadas por ele naquela época. Lilinha ficou com ele e saiu contando pra todo mundo. Ela não conseguia ficar quieta, muito menos calada.
Um dia me contou que andava pela rua treze de maio fazendo novas amizades. Eu não conseguia dar conta de quantas coisas Lilinha conseguia aprontar. A mãe e o pai trabalhavam fora o dia todo e ela e os irmãos ficavam sozinhos. O irmão mais velho, muito fechado e tímido, não conseguia controlar a irmã. Naquela época, alguma vizinha já contava pra minha mãe que Lilinha não era boa companhia. “É uma boa bisca, essa menina”. Falavam pra minha mãe não deixar eu andar com ela. Contudo, minha mãe se dava bem com D. Ducarmo, que lhe tinha apreço e eu jamais aceitaria ficar longe de Lilinha. Mas minha amiga, porém, não representava perigo algum a mim ou a quem quer que fosse, a não ser a ela mesma. Sua euforia e desejos precoces talvez a consumissem por dentro e sem quase nenhum controle dos pais ausentes, ela vivia aqueles dias como se fossem os últimos. Muito, muito viva era minha coleguinha. “Muito espevitada essa menina!”, “garota sem freio”. “Atrevida, isso sim!” Ela com certeza não se importava com nada e nem com a opinião de ninguém. Nunca a vi reclamando que alguém tinha falado mal dela. E também nunca a vi triste ou pensativa. Mas as tristezas de Lilinha vieram um dia, trazidas como de supetão, assim como quando chegavam as chuvas de setembro e com ela a lama podre arrasando minha rua e nossas casas. As tristezas que como água de lama são difíceis de limpar. Dores que não destruíam totalmente uma pessoa, mas que uma vez surgidas, marcavam para que nada pudesse ser como antes.
Quando iniciou o desenfreio, aquele padecimento todo, eu sofri muito por ela, e por antecipação, penso que até mais que ela, pois talvez fosse provável que eu, e não ela, absolutamente,  se apercebesse da enxurrada que sobrevinha e que levaria minha amiga para um caminho estreito de insucessos e frustrações. Eu me lembro, como se fosse hoje, como tudo aquilo se sucedeu
Lilinha entrou correndo lá em casa e foi direto pra cozinha. Lá, eu lavava os pratos da janta. Era um dia de sexta feira à noite e o Jornal Nacional começava. Eu fazia minhas obrigações de filha obediente. Ela adentrou agitada querendo me contar uma coisa importante. “Tenho um segredo pra te contar!...” Embora ficasse curiosa, eu como sempre me controlava diante de Lilinha, até pra ver se o ritmo dela diminuía, mas ela estava ansiosa por demais e tinha uma cara muito sorridente e um olhar de quem tinha aprontado algo. “Aconteceu uma coisa comigo agora a pouco!” “adivinha?!” “eu fiz uma coisa...” Pedi a ela que contasse logo ou que esperasse eu acabar o serviço e a gente ia pro quarto conversar. Mas não sei o que tinha ela, que não parava de repetir a mesma coisa. Até que me disse suspeita e sorrindo”. “A palavra começa com “rela”. Lilinha saiu correndo sem me dar chance de perguntar mais nada.
Eu fiquei com aquilo na cabeça e não consegui adivinhar o que era ‘rela’. Assim, decidi ir na casa dela e saber mais detalhes, mas antes de ir, começou a cair uma chuva muito forte e logo a energia foi embora. Os relâmpagos por essa época eram ameaçadores e eu fui para o meu quartinho. Papai me deu uma vela e isolada da agitação de minha família com a chuvarada, eu não conseguia para de pensar na meia palavra chave de Lilinha.  Um relâmpago assustador ecoou e parecia querer destruir a nossa casinha. Pedi a Deus que a chuva parasse logo e que não entrasse de novo água na nossa casa. A segunda-feira passada tinha sido um trabalhão e ainda podia sentir o cheiro da lama em alguns cantos e paredes. Mas aquele relâmpago também serviu para aclarar minhas ideias e num susto decifrei o enigma de minha amiga. “Eu fiz uma coisa!” “Rela”. Eu só tinha doze anos e Lilinha também, mas eu era muito madura e uma leitorazinha voraz de livros e de tudo que me caísse nas mãos. Lilinha tinha experiência de bicho solto, sabia de coisas... logo concluí que Lilinha  teria transado com alguém e por isso estava tão agitada querendo me contar...
A revelação trazida pelo relâmpago me assustou muito e fiquei enervada. Ela só tem doze anos! Tive raiva dela e achei ao mesmo tempo chula aquela abreviação: “Rela”. “Que estúpida!” Aquela expressão vulgar rodou em minha cabeça a noite toda. “Rela” “Rela”. “Eu fiz...” “Rela”. Eu sempre achei minha amiga infantil demais, mas aquilo foi, pra mim, naquela época, a pior de todas as suas atitudes, a mais idiota. Pra que transar aos doze anos?! Eu não conseguia entender. Nunca entendi a pressa de Lilinha. A sua ânsia de vida. Se olho hoje pra aquele tempo, meu olhar se põe meigo e idealizo aquelas duas crianças. Uma tão séria e sem querer crescer, envolta nos mistérios dos livros; a outra, tonta de criancice, solta e com desejo de experimentar logo ser mulher. Me lembro que naquela noite eu não dormi.
Fui cedinho falar com ela. Lilinha me contou sem enfeites e querendo se por a mulher. “Tive relação sexual com o Robertinho”. Eu olhei bem séria pra ela e ela começou a rir e a falar. Parecia não se importar com a gravidade do ato e também demonstrava que tinha feito algo sem importância, como  pular de uma árvore, saltar um muro, cair no chão. Eu me preocupei e pedi que ela não contasse mais pra ninguém, ela podia simplesmente continuar a vida normalmente, bastava que ficasse quieta. “A gente guarda segredo”. Ela sorriu muito e disse que sim. Mas três dias depois minha mãe contou em casa que a rua toda estava comentado que a Lilinha tinha se prostituído com um dos filhos do Seu Joaquim cearense. Eu tremi e minha mãe me perguntou se eu sabia de alguma coisa. Disse à mamãe que não sabia de nada daquilo.
Mas se eu não havia contado pra ninguém o segredo de minha amiga, então ela mesma tinha espalhado. À tarde, encontrei Lilinha e ela me parecia muito convencida do feito e me disse que o pai dela ia obrigar Robertinho a se casar. Embora ele só tivesse dezessete anos, ia ter que casar com ela. Juro que foi naquele momento que vi o abismo de compreensão que havia entre mim e minha colega. Não lhe disse mais nada, nem lhe contei o quanto me decepcionava aquela história de casamento. Quando cheguei em casa eu chorei por ela. E eu sabia que tudo estava errado e não podia mudar nada.
A rua 7 estava animada com a novidade. “Doze anos e já é puta!” “essa menina nunca quis prestar!”. As colegas da rua cochichavam o que Lilinha não quisera fazer segredo. “Sabe, mermã, que ela me contou que foi assim: O Robertinho me levou pro quarto, tirou minha saia, fastou a calcinha com a  mão. Doeu um pouco e saiu sangue.” “ela disse que ele depois mandou ela ir embora logo pra mãe não desconfiar.” “Foi mermo, nossa! “Ela contou foi sorrindo!” “Lilinha é doida de pedra!”. Quanta falação, quanta conversa sobre a vida de minha amiga e foram dias e dias. Por causa disso mamãe não me deixava mais ir ver a Lilinha, eu ficava triste, mas também estava magoada por ela não ter me ouvido.
Um dia, antes de casar ela foi me ver, estava desconfiada como se tivesse feito coisa errada ou tivesse feito algo contra mim, mas, de fato, ela não, mas os adultos faziam, levando minha amiga pra longe de mim e de nossa infância. Eu a tratei bem, mas fui distante, acho até que fui fria com ela. “A gente vai morar com os pais dele...” “Você gosta dele?” “Acho que gosto...” “Não precisava nada disso”. “tua família não tem esse direito” “Eu sei, mas eu quero” “Tu é criança ainda...como eu...” Falei por fim e tive vontade de chorar.  Falei mas mudei de assunto. Meu ciúme era evidente, ela me traía com a sua idiotice de casamento. Mas ela não podia entender isso também. Eu fazia planos da gente se formar e ir morar sozinhas num apartamento. “a gente vai ser independente, Lilinha”. Mas eu me lembro bem agora, que ela não participava desse meu sonho, pois quando eu falava isso, ela ria e ficava calada, não dizia nem que sim e nem que não.
No dia do casamento, ela foi lá em casa, não sei se me ver ou se mostrar, porque ia se casar. Estava muito animada e parecia não se importar com a minha tristeza. Eu, por minha vez, resolvi ser má com ela e lhe disse: “sabe, daqui uns anos a gente vai se encontrar... tu, toda velha e acabada com seis meninos pra criar e eu, jovem, formada e dona do meu nariz” ...Lilinha sorriu, meio sem graça e não disse nada, se despediu de todos e lá se foi feliz pro seu seu casamento arranjado.
Muitos anos mais tarde, realmente encontrei ela mais ou menos assim como havia lhe dito. Parecia bem mais velha que eu. Lilinha era mãe de cinco crianças e levava uma vida incerta e difícil para criar aquelas criaturinhas. Uma delas inclusive a avó é quem criava. Lilinha foi morar numa favela no Rio de Janeiro e só vinha aqui sem os filhos, pois o dinheiro só dava pra passagem dela. A primeira  vez que nos reencontramos não foi um acontecimento muito agradável, pois foi uma conversa sem afeto ou intimidade, logo nós, que éramos tão unidas; ela me pareceu pouco a vontade e eu também não me senti motivada com sua presença de mulher sacrificada.
Fiquei olhando pra aquela mulher e tentei reencontrar minha amiguinha; não havia nada, nem alegria nem impulsividade. Apenas uma mulher entristecida e fragilizada, vítima de um passado envolto em preconceitos, inconsequências e perseguições
A fuga de Lilinha da casa dos pais, se dera um mês depois de ter largado o marido. Robertinho, imaturo e machista, logo começou a se mostrar grosseiro e mandão. Como Lilinha era muito menina e impulsiva aquilo não podia ter geito; ele tentava impor-lhe obrigações de mulher casada e para convencê-la, batia muito nela. Como na casa da família do rapaz não estava dando certo, foram morar na casa dos pais dela. Mas lá também não deu certo. O rapaz era preguiçoso e só queria viver trancado no quarto com ela. O velho Zé Sousa não gostava. “Senvergonhice dessa menina!” “E as outras pequenas vendo esses dois enrolados numa só toalha!”. Essas coisas, eu sempre ouvia de minhas colegas da rua, elas sabiam muita coisa da vida de Lilinha. Seu Zé Sousa mandou o rapaz de volta pra casa dos pais e ela ficou por lá
Os desentendimentos, as brigas e a distância deram logo um fim naquele casamento. Mas o velho queria que ela entrasse na linha e infernizava muito o juízo da menina. Não queria que ela saísse e obrigava fazer todos os serviços da casa; se encontrava o marido, Robertinho a maltratava e abusava dela. Naquele dia, o velho brigou porque Lilinha tinha saído escondida pra uma festa e quis bater nela. Não aguentando mais, ela gritou também e correu desesperada, enlouquecida e revoltada. Fugiu e foi morar numa casa de mulher da vida. A rua sete não falou de outra coisa por muito tempo. E lá em casa, ninguém podia falar mais o nome da Lilinha, nem de bem nem de mal. 
Falavam que ela era bem requisitada lá na casa, alguns homens do bairro, inclusive os velhos casados  iam pegar ela. Agora sim minha amiga tinha se perdido pra sempre de sua infância e de mim; quantas noites em claro eu pensava no que acontecia com ela. Certa vez a vi passando, indo visitar a mãe. Estava vestida com uma saia longa, blusa decotada e uma maquiagem pesada, mas eu achava que era como se ela estivesse fantasiada de mulher adulta, pois Lilinha era um tipo andrógino, sempre de cabelo curto e seios miúdos, enquanto eu já tinha corpo de mulher; odiava meus seios grandes e inchados! Mas eu a vi passando, ela também me viu mas fingiu que não e passou direto sem falar. Ficou assim muito e as colegas comentavam que ela não tinha era coragem de falar com as pessoas, eu, no entanto, sentia que no fundo era continuava na fantasia do seu mundinho e no fundo se sentia orgulhosa de toda aquela falação.
Lilinha fora vista depois na turma do Dito, saía com ele e experimentava droga. Um dia a dona do cabaré logo expulsou ela de lá. E ela voltou pra casa da mãe, depois da morte do seu Zé. “bem que ela podia se ajeitar!” “aquela lá é sem jeito!” Eu não a via muito por aquele tempo, afinal nos distanciamos definitivamente. Soube muitas histórias sobre ela, histórias escabrosas aumentadas por aquele povo maldoso e desocupado, por outro lado, eu não podia esquecer a natureza inquieta dela e compreendia que se muita coisa errada ela fazia, era tudo fruto de sua intensa paixão de viver tudo ao mesmo tempo. Saindo com e com outro, ficando dias fora de casa, saindo com homens e até com mulheres diziam, Lilinha parecia não ter limites, passava de mão-em-mão, bastavam se aproximar e oferecer droga ou dinheiro, e muitos obtiveram prazer fácil daquela menina. Ela não se importava e tirava o seu proveito. E depois de muita aprontação apareceu grávida. A mãe nem se deu ao trabalho de querer saber quem era o pai, cuidou dela na gestação e depois que o menino nasceu e passados seis meses, mandou Lilinha embora, mas sem a criança, pois queria criar o neto. A menina não se fez de rogada e foi embora mesmo. Parece que não lastimou perder o filho pra avó. Depois viajou pro Rio de Janeiro e disseram que foi fugida, porque devia a turma do tráfico e eles queriam acertar as contas com a devedora. Ficamos uns dez anos sem saber notícia dela, e todo mundo um dia parou de falar daquela vida sem freio.
Eu é que nunca a esqueci, mas se me lembro dela é como a menina moleca do passado, e me pego rindo de suas malinações e de sua vivacidade extrema; minha amiguinha correndo de bicicleta, sua agilidade, seu riso aberto e os olhos espantados, o cabelo curto, loiro e assanhado eu não consigo esquecer... penso o quanto deve ter sido feliz a ponto de, quem sabe, não haver nenhum arrepedimento, pois se alguém é feliz em criança todo o resto de vida pouco tem importância. Lilinha, eu sei, foi a menina mais feliz da rua sete.
           
           

28/10/2011

Conto 9: A deusa dos presídios

 A deusa dos presídios
      Eu não dava nada por ela. Tinha um ar de criança, aparência meiga e frágil.  Bonitazinha, morena, com um corpinho fino, sensualmente calmo. Leonelisa que eu via passar em frente a minha casa e que morava na última casa da primeira esquina da rua sete fora uma menina calada, uma adolescente calada e também seria uma mulher calada... ou misteriosa? Às vezes eu ou minha mãe ou qualquer outro vizinho que a cumprimentava recebia em troca um simples e meio sorriso como um mistério, era um risinho tímido e fraco riso com olhos baixos, erguendo-se de meio súbito, insinuando  certa tristeza ou drama de que só pobre entendia.
           Podia ser que ela esperasse ser uma pessoa invisível ou talvez quisesse sê-la, talvez porque gostasse no seu íntimo e secretamente  passar desapercebidamente de todos daquela rua de lama. Se bem que na época, ela já mocinha, a sete fosse uma ruazinha com calçamento de pedra irregular, fora-se o tempo que nossa rua era chamada de rua do grotão, a aparência era mais respeitável. As casas não eram mais germinadas e baixas, as casas cresciam e a maioria tinha portão e até carro na porta. A prefeitura tinha tomado vergonha  e resolvido por volta do ano de 1986 não calçar a rua, mas fazer o escoamento adequado pra não mais alagar. “Serviço porco!” “Serviço de merda” disseram alguns. “Verba pública gasta sem nenhuma seriedade” explicou a professora Chiquinha que naquele ano tinha voltado de São Paulo casada com o marido evangélico. Ela se convertera por amor. 
      Mas os moradores tinham razão, pois a rua sete não ficou sem alagar não. E a buraqueira foi grande naquele ano e as gentes, mulheres, jovens, velhos e crianças se queriam atravessar a rua de um lado para o outro, tinham que passar pelas tábuas compridas, eram umas cinco ou mais que os homens da obra colocaram pra todo mundo da rua e das outras pudessem transitar. Eu mesma se passava tinha muito medo, pois era pelo menos uns dez metros de profundidade que tinha sido cavado. A molecada é que gostava do perigo de passar pelas tábuas “Valei, minha nossa senhora! Um dia desses um vai cair!” Ninguém caiu. Nem mesmo o velho cabo Ciço. Quando ele passava por lá, os moradores, sentados na porta de suas casas, ficavam assistindo e morrendo de rir e uns temendo ou torcendo para o pobre pinguço cair no buracão da rua. “Cuidado, cabo Ciço!” “Olha ponte, home!” O velho cabo com toda aquela cachaça nem se apercebia da mangação do povo, seguia em frente. Vovó que gostava de lorotas dizia que ele dizia com voz de boi e assim: o boi berrar não berra, urra não urra, se atrás não vem gente quem diabo me empurra?É o grogue...a gente ria demais e ficava vendo a hora do cabo Ciço atravessar e cair, mas ele parava em frente tábua de passagem, ajeitava a coluna daquele corpo magro e comprido e maltratado de bebida e aí calculava sinalizando com a mão a reta, o velho media esqueda, direita e centro e atravessava quase na carreira e o povo gritava “la vai” “vixe, é agora!” “Eiiiiiiiiita, ele passou minha gente!”. Com a diversão terminada, o velho sumindo dentro de sua casa, logo outros assuntos iriam ocupar as mentes ociosas de quem vive sentado em porta de rua, fazer o quê? Era uma vidinha besta, mas era uma boa vidinha mesmo assim.
Mas como eu disse antes, a rua melhorou com o calçamento, na aparência, porque logo na primeira chuva de fim de ano, o povo se desesperou de novo e foi aquela tristeza e decepção, entrou tanta água nas casas, dois muros levantados, bem pouco tempo depois do trabalho da prefeitura, o muro da casa de seu Vicente e o da dona Mariinha, naquele ano foi até bem pior do que os outros anos. Os moradores logo descobriram que as rachaduras das casas ocasionadas por causa das explosões que os homens da prefeitura tinham feito pra abrir a bueira, haviam comprometido muito as estruturas, e água que entrava por cima, por baixo, agora entrava também pelas paredes rachadas e  todo mundo lastimava “essa rua num tem jeito mesmo”, “vamo processar esse prefeito” “minha gente, a culpa daquele engenheiro bosta” “hum... eu duvido que alguém se disponha a ir lá reclamar”. Seu Vicente e minha avó foram e a prefeitura veio, fez uns consertozinhos nas paredes das casas mais comprometidas e nunca mais voltaram. Assim, teve gente que vendeu a casa e foi embora.
Uns iam, mas outros queriam ficar assim mesmo porque a rua era boa e todo mundo se gostava e se conhecia... mas quem conhece quem realmente nessa vida? Vovô é quem dizia que gente é difícil de se conhecer só pela cara. “Minha netinha, a gente conhece gente decente é pelas ações!”
       E vovô tinha razão nessa leitura das gentes. A Leonelisa, aquela menina meiga do ínicio da história, talvez de santa só tivesse a cara, e chegava até ser engraçado saber que por trás daquele ar de tristinha se escondia uma mulher de desejos secretos e ações obscuras. Houve um dia que saiu por umas bocas daquela rua que Leonelisa não só fazia visitas íntimas ao antigo namorado Andrenildo lá no presídio da Major César, mas que ela era famosa também até nos presídios onde ficavam os bandidos perigosos. Quem comentou isso não se soube, mas o segredo da menina virou boato e todo mundo falava ou aumentava um pedacinho.
Essa história de Leonelisa surgiu depois que o namorado Andrenildo apareceu morto, pendurado apenas por uma corda fina de lençol velho na Major César. A rádio pião, embora suspeitasse de morte encomendada, fazia questão de contar que o rapaz não suportou saber que a Leonelisa tinha feito duas visitas íntimas nos presídios. Uma visita ela tinha feito a um antigo namorado, bandido fugido de Fortaleza e preso por aqui, assim que aprontara o primeiro assalto a uma casa lotérica na Miguel Rosa. A visita tinha sido na prisão que Andrenildo tinha ficado por quase sete anos e a outra visita ela tinha feito prum bandido recém chegado na Major César, quase no mesmo dia em que Andrenildo tinha sido  recambiado para lá. Segundo contaram, os presos que conheciam o rapaz de águas passadas, falaram que só uma coisa deixava Andrenildo desnorteado, era a lembrança dela. Ele, diziam, que estava bem e ia sair dentro de três meses, estava até feliz, mas foi só ter notícia da morena fazendo aquelas coisas com os outros e não dando a mínima pros sentimentos dele que o rapaz não suportou e fez o que fez.
A história é escabrosa. Mas era assim mesmo que o povão tava contando, exagerando ou não, aquela história da Leonelisa era muito estranha, até porque olhando pra ela, pra aquele jeitinho de quem não quer existir, não dava pra acreditar em tamanha leviandade. No entanto o passado dela era mesmo a sua condenação, pois ainda adolescente, fora enredada numa história de assalto, por ter se envolvido com um bandido perigoso. Na época, ela jurou chorando pra mãe que não sabia que aquele homem, que chegava todo arrumado, de carro Novo, era um traficante. E dava pra acreditar nela, pois afinal, era tão fechada, tímida, como iria saber se defender de um homem mal intencionado? Mesmo quando Leonelisa andou de namorico com o Andrenildo, ele era apenas um garoto e nem tinha sido preso. Mas falaram que quando ele fez o assalto ao supermercado e que teve até morte de um policial, o Jorgito; o condenado assim que desceu para a penitenciária Irmão Guido chegou a receber umas visitas de Leonelisa. Quem conheceu ele de perto, dizia que ele tinha uma paixão louca por aquela menina e que dizia pra quem quisesse ouvir que podia até ir pra cama com outras mulheres, mas que amor mesmo só por ela; o que ele sentia era veneração, muita paixão  e que não tinha cura. Intrigante certas almas gêmeas. Andrenildo se parecia com a sua amada: não gostava de muitas amizades, era muito calado, cheio de mistérios com a família. A mãe e as tias achavam ele muito ingênuo. Aquele jeitinho calmo, quase parado, o olhar tristonho, a fala meio boba e o olhar sempre cabisbaixo, enganavam bem. 
Aprontou muito e com menos de 17 já estava na prisão. A mãe que tinha meios fez de um tudo pra tirar ele de lá. “Tadinho, desse menino, aí preso!” “Só faz isso, por causa das más companhias...” falavam as tias. Andrenildo fazia bem o papel de coitado. Mas aquele menino era uma mente sagaz e com disposição para muita coisa ruim. De pequeno já aprontava. Roubava, usava drogas e a família sempre achava que o coitadinho tinha problema. “O bichim foi criado sem pai...”. A segunda prisão do rapaz, resultou em muita tristeza pra família dele, tanto porque pagava os feitos ruins do passado acobertados pela mãe, tanto pelo fato de que aquela prisão era uma injustiça contra o rapaz. Quem leu os autos do processo afirmava que ele ia pagar por um crime que não tinha cometido. A sentença condenatória deu a ele 25 anos de pena e ele ficou mais tempo que qualquer outro preso ficaria. Andrenildo seria solto, após ficar mais de 15 anos preso, uma parte da sentença ele pagou na Irmão Guido, e outra na Major Cezar. E quando ia finalmente ficar livre, o dito se deu. Os agentes encontraram e entregaram pra irmã dele uma carta e uns livros de auto-ajuda e poesias. A carta tinha sido escrito um mês antes e falava de despedida e de solidão. Em um dos livros o nome dela aparecia em várias páginas riscadas por ele, era um endeusamento, uma obsessão, uma loucura de dar pena e no livro de poesia, ele circulava e grifava passagens sobre uma mulher idealizada, um anjo de beleza que o induzia e seduzia.
A morte de Andrenildo ficou sem resposta e a polícia pouco tinha interesse no caso. A irmã bem que tentou descobrir algo, mas as histórias contadas e recontadas pelos presos e agentes não davam pistas do que realmente acontecera, pairava mesmo um mistério, o nebuloso de tanto “disse me disse” se perpetuou.
Misteriosa mesmo foi a ação de Leonelisa. Todos na rua se espantaram e comentaram que a moça só sendo muito da ruim. Como é que um antigo namorado morria, um rapaz extremamente apaixonado por anos e ela sequer esboçou o menor gesto de dor ou pena pelo acontecido, sequer visitou a mãe, a irmã do rapaz. Leonelisa não foi ao enterro e nem uma missa rezou.
A face da deusa se antes era obscura, revelar-se-ia, com a morte de Andrenildo, uma face de frieza e ausência de compaixão; mas poderia ser que ela escondesse bem no fundo de sua alma de mulher alguma tristeza, talvez ela tenha sofrido e apenas entendia, no seu egoísmo íntimo, que ninguém tinha nada a ver com isso.
 Agora quem conversou com ela disse que Leonelisa nem parecia que conhecera um dia o Andrenildo e que sentira alguma paixão por ele. Não quis comentar o fato.  "Águas passadas" disseram. Um dia a vi passando solitária e muito estranha como sempre, e senti um não sei o quê súbito, logo que ela repetiu o velho hábito: seus olhos baixos se ergueram, mas muito mais que num relance, um olhar abrupto e dessa vez sem nenhum meio riso triste; Leonisa olhou sem alma, sem vida, uma morta. Então olhei-a inteira e talvez a tenha visto bem mais que alguém pudesse vê-la em cem anos e não era mais a forma da menina, da deusa meiga e serena, nada havia naquela mulher, que embora, ainda jovem, mais parecesse uma velha ressequida, muito magra que o craque consumia e seu sorriso não existiu naquele relance, se existira era lá atrás, nas lembranças do passado.
 Certa vez contei a um amigo dentista a história de Leonelisa e Andrenildo e ele achou tudo interessante, como de fato fora. Não esqueço o que disse sobre a última aparição da moça, que o olhar sempre para baixo é que somente enxergava a si e o submundo, como a igualar-se; sim; ou seu olhar de profana não saberia enxergar o outro, e impotente apenas via a sujeira e a imundície das ruas lamacentas a lhe oferecer ilusões, amarguras, daí não mais nenhum riso  nem meio riso.