Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

18/11/2008

Conto 6

A ESPERANÇA DITOSA


D. Ditosa é minha tia avó por parte de mãe. Poucas vezes convivi com ela, mas sempre tive forte impressão e um desejo de tê-la conhecido mais, ter convivido perto. Infelizmente, moramos em cidades diferentes. De sete irmãs e um irmão, ela foi a única que não se casou. Por quê? Sobre isto reinava um silêncio velado.
Tia Ditosa já tem mais de 60 anos, é uma mulher pequena e de aparência saudável. Se guarda tristezas, não aparentava. Ao contrário: parece nutrir alegria e esperança pela vida. Mulher de beleza distinta e delicada, tem a pele amendoada, um rosto redondo, olhos castanhos e cabelos encaracolados. As poucas vezes que a vi conversando, pude admirá-la. Parecia-me bem tranqüila, usava as palavras com segurança, dizia pouco, mas com convicção.
A minha curiosidade por sua vida sempre foi enorme. Eu não entendia, na minha cabeça de adolescente, por que Tia Ditosa, uma mulher tão interessante, não possuía um companheiro, por que não tinha filhos naturais. Seu único filho, se assim pode-se dizer, era um rapaz que ela adotara quando ele ainda era pequeno. Eu olhava pra tia Ditosa e ficava me perguntando: Se meu bisavô Antônio da Luz escolhera os sete maridos para as suas outras filhas, por que não escolhera para tia Ditosa?
Como tudo passa inevitavelmente nesta vida, passou também a minha imensa curiosidade por ela e cheguei a esquecê-la por um certo tempo. Afinal, Nós sempre vivemos aqui na capital, enquanto que ela mora numa pequena cidade do interior, chamada Valença, num belo sítio, distante de nós. Como era discreta e reservada, poucas notícias se tinha dela. Mas um belo dia, ouvi de vovó:
- A Ditosa casou com o José, da finada Jacinta!
Minha mãe, minhas tias, vovó falavam ao mesmo tempo e todas eram só felicidades. Eu mesma fiquei com o coração saltando, numa euforia, numa emoção inexplicável. É certo que ao mesmo tempo me veio aquela curiosidade e não resisti:
- Mas ,vovó, por que só agora ela se casou?
Minha avó ainda emocionada, me contou a história de Tia Ditosa e Seu José. Uma história digna de ser escrita.
Tia Ditosa viveu pouco na casa do pai Antônio da Luz e mãe Rosa. Ainda pequena, foi morar com uma tia, de parentesco distante, que tinha pela menina grande afeição. Essa senhora tinha apenas um filho pequeno, chamado José. E quando Ditosa foi morar com eles, o amor da tia logo se transformou em amor de mãe e assim quis transmitir aos pequenos o sentimento natural de amor entre irmãos.
Mas como o inesperado acontece, esse que muitos chamam de destino havia reservado algo mais para Ditosa e José. Com a convivência, o coração de ambos despertou: O amor entre homem e mulher surgiu cedo nos corações daqueles pequenos jovens.
À medida que foram crescendo, cresciam a amizade e as afinidades, e a paixão foi se confirmando. Mas naquela época, certos valores não podiam ser questionados. Tudo era rigidamente imposto pelos pais. A mãe de Francisco não aceitava contrariedades, considerava-os simplesmente irmãos e não admitiria em nenhuma hipótese aquela união. Quando percebeu a paixão definitiva dos dois, tratou de cortar o mal pela raiz.
- O amor de vocês é pecado.
Mandou José para longe de Ditosa, estudar na capital. E tão logo pôde, obrigou-o a se casar com outra moça, Jacinta.
No entanto, com tia Ditosa não houve jeito. Teimosa e determinada, ela jurou jamais amar outro homem e nem cedeu a pressão de se casar sem amor. Resignou-se.
Mas permaneceu ao lado de sua tia mãe toda uma vida. Apesar da tristeza do gesto autoritário da mãe, sabia separar as coisas, pois era amada por ela com sinceridade.
O tempo se passou. E Ditosa e José se viam raramente. Quando a velha morreu, acharam que os dois ficariam juntos, mas nada disso se deu. Eles, já com mais idade, possuíam responsabilidades, preconceitos e valores herdados de um tempo difícil para aquele tipo de amor.
Contudo, um amor impossível se nutre de esperança. E sobrevive. O amor desses dois resistiu mais de meio século. E venceu também à distância, à família, à sociedade. Com 72 anos de idade, Seu José enviuvou. Quanto a este triste episódio nada posso contar-lhes, pois realmente nada soube.
O que fiquei sabendo por minha avó naquele dia festivo para nós, foi que depois de tantos anos de amor reprimido, Seu José foi atrás de minha tia e deve ter dito a ela que jamais a havia esquecido; que a vida toda tentara agir corretamente com sua esposa, seus filhos e com a memória de sua mãe; no entanto, nada mais o impedia e não podia mais negar a ele e a ela o direito a verdadeira felicidade.
Ao que entendi do que minha avó me contou, Tia Ditosa não hesitou um só minuto. Casaram-se tão rapidamente que surpreenderam a todos. Minha mãe me contou muito tempo depois, que na hora do casório, o juiz perguntou a seu José por que ele estava tão eufórico, e ele respondeu assim:
_ É que são cinqüenta anos de amor reprimido...
Faz cinco que eles estão juntos. Minha avó me disse que eles vivem numa fazenda, lá em Valença e sozinhos, mas que adoram receber parentes e amigos. Felizes? Sim. Nunca mais revi minha tia. Também, ainda não conheço Tio José. Porém me sinto feliz por eles, pelo reencontro dos dois. E dessa história de amor consigo extrair um pouco de esperança a minha vida.

02/11/2008

Conto 1

Dia de chuva

Eu fora sentada ali por meu pai para que não pisasse na lama. A lama real escura imunda e fedorenta que eu pequenina e dispersa no mundo mágico da infância não conseguia perceber. Era uma mesa alta pra mim e meu irmãozinho menor e ali também me maravilhava aquele espaço reduzido e protetor que eu achava ser uma brincadeira. Nós dois íamos ficando apertados por causa dos objetos que minha mãe e meu pai colocavam ao nosso redor, eu logo comecei a achar a brincadeira sem graça. A água, a lama fria tocou os meus pés quando desci. E eu vi com verdade que minha casa estava diferente. E muitas vezes depois eu veria sempre, ano a ano, o desespero de minha mãe e de meu pai e meus irmãos mais velhos. O contato com a lama foi o início do contato com a realidade que tantas vezes tentei escapar e frágil em minha condição humana não era capaz de escapar. Mas o contato com a lama me retirava do mundo que eu via. Aquelas pessoas engraçadas, com suas roupas antigas. A menina Ciça, de cabelo negro amarrado com lenço azul, sempre me visitava e me contava alguma história diferente ou mesmo me orientava dizendo para não subir na árvore, pois ia cair. Havia minha boneca que se sentava no meu colo e cantava uma ou duas músicas engraçadas para que eu não ficasse triste porque não podia brincar na rua nos dias de chuva e estava doente, também me dizia pra não ter medo do meu irmão mais velho só porque ele era mais forte e gostava de bater nos pequenos. Havia meu amiguinho Wilker com quem eu fazia barquinho de papel, ele gostava de me visitar quando as meninas da rua não queriam brincar comigo, algo que não sabia entender como a infância tem essa face de exclusão. Mas W. não deixava que ficasse triste e me ensinava coisas meu amiguinho. Às vezes eu queria até apresentá-lo pra meus irmãos e irmãs e também pra minhas colegas, mas com medo de ficar sem amigo de novo não apresentava. Eu era uma menina tímida, mas não era medrosa e gostava de ficar quietinha olhando as coisas desse mundo, até que o W. e minha bonequinha me chamavam pra suas realidades e eu não fugia, topava a invasão.

Conto 7

A Dívida

Como o ódio e aversão por alguém podem existir sem mais nem menos? Pois o ódio, aversão e asco se instalaram em mim naquele instante e não foi possível nunca entender. Ele, de repente, me olhou e eu olhei pra ele, aliás, foi apenas fração de segundos que nos olhamos francamente, raivosamente e sem medo. Ele fechou o cenho e levantou a cabeça em tom provocativo. Eu respondi quase que ao mesmo tempo, com rapidez e ódio daquele verme, escroto e covarde. Mas fiz algo que ele não esperava, pois naquela fração de segundos, não seria tão sagaz, o verme, sabe o que fiz? Acrescentei na ofensa uma tremenda banana, isso mesmo uma tremenda banana! Ah, que ódio, eu sei, ele sentiu de mim, pois não teve tempo de pensar nisso ao destilar a sua raiva eterna sobre quem ele detestava. Se a proximidade fosse maior, se não houvesse os obstáculos ali, ele teria me estrangulado por causa daquela tremenda banana. No entanto, penso que eu é quem o estrangularia se tivesse tido oportunidade, seria eu quem sufocaria, apertando nervosamente aquele pescoço fedorento como ele todo o era e colocaria forças em minhas mãos, muita força mesmo. Meu ódio seria misturado a um estranho prazer, quando visse que seus olhos se esbugalhavam e as veias cheias daquele sangue impuro e azedo começassem a querer espocar. Aquele rosto imbecil, amarelado já não seria o mesmo, pois o vermelho sangue daquele rosto desgraçado se transformaria em roxo asfixiante a cada esforço meu. Sim, não tenho dúvida de que mataria aquele imundo desprezível, cão sem dono, vira-lata, mais vil e nojento que uma barata de lixo...
...Mas eu te falei: se tivesse oportunidade e eu não tive felizmente. Talvez você esteja pensando que eu sou uma pessoa descontrolada ou pior, alguém violento, cruel, e assassino. Você pensa que sou alguém cuja ira se instala indomável mediante menor contrariedade? Acredite em mim, não sou nada disso e falo com verdade no coração, assim como usei de franqueza quando relatei este terrível incidente daquele dia. Às vezes, temos reações inexplicáveis, onde a natureza instintiva se sobrepõe à lógica da razão, ao equilíbrio humano, ao controle das emoções. Mas, de fato, o descontrole, tem que ser mantido sob controle a fim de que velhacos covardes sejam preservados! Desculpe, eu novamente, estou me deixando envolver por aquele terrível acontecimento. Acontecimento sem muita explicação e que agora vou te esclarecer, detalhando os fatos.
Naquele dia de fevereiro, era um sábado à tarde, nem fazia muito calor na cidade, nem quente nem frio. Eu resolvi ir até a farmácia, na esquina da avenida Miguel Rosa com a avenida Valter Alencar, mas eu não estava doente, não, ia apenas pagar uma fatura de cartão, coisa de rotina mesmo. Então, foi naquele cruzamento, que um ônibus, desses de viagem interestadual, estava aguardando no sinal vermelho. Como o trânsito estava liberado para mim, eu atravessei a primeira avenida. Foi quando eu vi aquela pessoa dentro do ônibus, estava sentado exatamente na parte do meio do ônibus, com a cabeça pra fora da janela, como te disse, ele também me viu no mesmo instante, e então o inesperado aconteceu, assim mesmo como te relatei. Um ódio tremendo, vindo não sei de qual lembrança, se desentranhou de mim e daquele estranho, foi mesmo uma reação impulsiva e sem nenhum nexo! Na hora, não pude xingá-lo, nem ele a mim, até porque o ônibus arrancou tão rapidamente ao mesmo tempo da nossa reação. Eu, fiquei por um instante, ali no meio fio, ofegante e com os batimentos cardíacos acelerados, sentindo muita raiva de um sujeito, que nunca tinha visto em minha vida! Isso eu tenho certeza.
Foi uma situação incomum, reconheço, mas quando penso que a explicação poderia estar em algum lugar do passado, em outra vida que eu nem posso sequer me lembrar, sinto uma frustração terrível, uma sensação ruim de muito mal-estar. Não sei se você me entende, na verdade, até eu me incomodo de pensar assim, pois não tenho ligação ou crença nenhuma com o espiritismo. Mas, senti e ainda sinto ocultamente, que eu e aquele sujeito tínhamos algo a resolver e que, infelizmente, nosso acerto de contas não pôde acontecer. Aquele encontro foi uma única chance do destino ou teria sido só um lapso da vida? Por que encontrá-lo daquele jeito, ele lá no ônibus impedido, indo embora, eu no meio da avenida com o braço em riste, descomposta? Agora parece uma gozação enigmática contra eu e aquele estranho. Sem explicação.
Pensando bem sobre tudo isso, me sinto ridícula, revelando essas coisas pra você, fico até parecendo um homem e não uma mulher, porém, eu, quando me lembro dessa história, sei no meu íntimo, que o meu ódio por aquela pessoa era real, me sinto também insensivelmente estranha, pois não sinto arrependimento ou culpa. Mas há outra coisa, não é ódio de uma mulher por um homem, percebo se tratar de um ódio que nunca senti nessa minha vida de mulher, era coisa de homem mesmo. De homem pra homem. Dívida.
Em: 14/12/07