Amigo argonauta,

Em Contos da rua 7 há muitas histórias intrigantes, emocinantes, algumas misteriosas e outras banais. Histórias que se entrecruzam e que revelam um pequeno, mas complexo universo comum/incomum de uma rua de Teresina: as casas, as famílias, os amigos, os amores, as paixões, os bares da esquina, os crimes, o suicídio, os loucos, as putas; os moradores de aluguel e a lama e as horas, e os dias e os anos... Tudo seria apenas ficção, se o fantasma da realidade não revitasse a memória.
Sugestão: inicie pelo conto 1.

21/08/2009

Conto 5: Naldo no espelho

Naldo no espelho
Quando Naldo chegou na rua, a mulherada ficou agitada. Aquele jovem alto, de aparência viril e ar de menino era uma novidade boa demais pra ser verdade. Ele viera trazido por aquela família maranhense que, provavelmente, desconhecia os perigos dos tempos de chuva da rua 7. Ali naquela época, alguém só comprava casa desavisadamente, achando que tinha feito excelente negócio. Alguns moradores antigos da rua até achavam graça, vingança de pobre é rir da desgraça alheia, que é a sua própria. “Mais um pra se alagar”. Se soubessem teriam mesmo comprado a casa da D. Totonha? O velho Luís mesmo teve muita raiva quando descobriu o mal feito. Assim que as primeiras chuvas vieram, foi logo arrasando com tudo que eles tinham trazido, a mulher xingou muito o marido e maldisse a sorte de ir morar naquele buraco, “Um grotão!” Diziam que ela queria ser muita coisa, “loira daquele jeito” “os filhos bem bonitos, tinha que ser mesmo”. Eu me lembro bem dela, uma senhora enérgica, mas carinhosa, alegre. Ia sempre brincar com suas filhas na casa dela. Quando o velho Luís morreu de cirrose, assim que pôde vendeu a casa e foi morar na zona leste. Mas aquela chuva de estréia deles foi logo que terminou a reforma da casa, aquela chuvarada, muito comum pelos meses de setembro e outubro. Foi uma alagação daquelas de derrubar muro, arrancar porta, um prejuízo de dar dó, as pessoas que não tinham as portas arrebentadas ficavam ilhadas em suas próprias casas. A chuva derramava um berreiro sem fim e em pouco tempo chegava até a avenida Valter Alencar. Nessa hora o povo da rua se enervava, outros faziam molecagem da própria miséria e falta de sorte:
A sete é uma piscina, minha gente!...”
Valei-me, minha Nossa senhora!...
Eita, diacho, que hoje eu nado...
Te aquieta, menino do cão, num tá vendo quessa água é só lama de merda e óleo das rua de cima!...”
“Vamo rezar, minha gente, vamo rezar... pra ver se São Pedro tem pena...”
Seu Zé, Me ajude aqui, homem de Deus...!
Ô, minhas panelas...meus pratos tudo!!!...”
“A parede da casa da D.Chica caiu, vixeee...”
“Acudam a mulher, meu povo,... e as crianças tudo pequenininhas! ...”
“Eiiiiiiiiiiita, agora é que ficou bão, sem luz!...”
“Mãe, pai, tô cum medo...”
“home num tem medo, deixe de ser abestado, hum!”
O pai do Naldo, quando chegou a sua vez do batismo da lama da chuva, muito indignado disse que se soubesse a verdade nunca teria comprado. Sei não... o próprio marido de D. Ilza, o finado Luis, havia adquirido aquela casa assim, meio que por engano. Melhor dizendo: querendo se enganar, e comprou e reformou. Ficou bonita e era uma das melhores casas dali. E foi assim que os novos inquilinos chegaram a nossa rua. Compraram e também reformaram. A casa branca ficou mais alta e ganhou uma pintura na frente alaranjada com porta e janela verdes. Era uma família do interior e com certa condição. Cinco rapazes e quatro moças. Dentre eles, o primogênito chamava atenção pelo porte, a pele morena clara e músculos de rapaz de academia. Eu mesma prestei atenção naquele jovem mais velho que eu. Ele passava sempre de manhã em frente a minha casa, ia comprar cigarro. Tinha um caminhar acelerado, trazia a cabeça sempre baixa e não cumprimentava ninguém. Quando retornava, trazia cigarro no bico e dava baforadas repetidamente. Por muito tempo eu e minhas colegas pensamos que ele era metido. “Só quer ser, né, mermã!”. Apesar de olhá-lo de vez quando, eu acabei tirando o sentido dele e por um certo tempo eu não o vi mais. Nessa época já trabalhava pra ajudar em casa, tinha uma vida agitada. Também foi por essa época que fui embora pra serra dos Carajás, fazer um estágio.
Um anos depois, já de volta e morando na casa de vovó, de dentro da casa, eu revi o Naldo, sentado na calçada da própria casa, parecia muito distraído e distante. Saí. Naldo se olhava num espelho pequeno e não se importava com a minha presença do outro lado e nem das pessoas que passavam e olhavam para ele. “Que rapaz narcisista”. Pensei e entrei. No dia seguinte, eu pude vê-lo de novo na mesma posição. O espelho, ele se olhando e o ar distante..., o espelho era outro, baratinho, talvez comprado no mercadinho do Quilé, de moldura retangular e alaranjada. E não é que numa manhã de sábado e calor, em que me encontrava sozinha em casa de vovó, distraída lendo Gabriel García Marques, o Naldo me aparece do nada, do meu lado esquerdo, a voz próxima e um pouco acima da minha cabeça me sobressaltou.
Lílhiiiia...” Ergui o olhar e, diante de mim, estava aquele homenzarrão apenas de calção, sem camisa e um aspecto de abandono e susto.
“...Tudo bem...” tentei parecer calma”
“... Lilhiiia, Lilhiia... moça de fibra...”
Naldo falava assim querendo ser suave, arrastado e ao mesmo tempo parecendo temer ser surpreendido por alguém ou alguma coisa. Por minha vez, fiquei sem reação, nem podia imaginar que ele sabia o meu nome e balançava afirmativamente pra ele, tentando entender o que ele fazia ali e o que pretendia.
Lilhia, posso... te pedir uma coisa...”
“Claro...fala...”
“Tu fuuuma?... (não, respondi, meneando negativamente a cabeça), tu me dá um trocadinhoo... depois eu devolvo...”
Me levantei apressada, fui até o quarto e lhe entreguei uns trocados, ele agradeceu e foi embora. À noite, depois de narrar o acontecido, minha avó disparou:
Esse rapaz, coitado, é doido! Tava internado no Areolino. Voltou tá com duas semanas.” E foi assim que meu jovem narciso me foi apresentado. Achei graça de mim mesma e de tudo que havia pensado sobre ele. Aos poucos pude entender o drama no qual vivia mergulhado. Dois dias depois daquele incidente, falei com uma irmã de Naldo, a Geisa, para saber mais sobre ele e ela me contou que a mania do espelho era um dos primeiros sinais que alguma coisa não ia bem com ele, além do fato de que ia ficando calado pelos cantos e também agressivo. Batia nos irmãos e com o avanço dos anos passou a estranhar o pai, desconhecendo-o a ponto de agredi-lo. Mas tomando os remédios, fazendo o tratamento direitinho, ficava bem.
Eu e Naldo nos tornamos próximos naquele verão, a gente conversava. Naldo ia lá pra casa, só de calção e cigarro aceso, acho que ele se sentia bem na minha companhia. Talvez porque o tratasse naturalmente e falasse sobre o que acontecia com ele sem medo de que ele ficasse magoado. Mas sempre vivi intrigada com seu jeito de falar, baixinho, arrastado e preocupado, pois parecia de propósito, mas não era. Certa vez, ele estava lá comigo na mesa, eu lia jornal, ele tinha entrado como de costume, sem se fazer perceber, ao dar por sua presença, parei de ler. Naquela manhã de agosto, Naldo estava muito quieto e me olhava de um jeito triste e perguntei como ele se sentia.
“Ela... ta vindo de novo...sabe, Lílhia”
“Explica pra mim, como é isso...vai...”
“Eu ouço uma voz... me dizendo umas coisas esquisitas... depois aquelas imagens escuras chegam, fico com medo... parece uma coisa assim bem feia ...uma coisa esquisita, sabe... de noite é pior... eu não durmo...”
“O que ela te diz?”
“Num sei...não me lembro direito...”
Percebi que na verdade não queria me contar, talvez não se sentisse completamente a vontade pra me contar tudo e eu respeitava e não forçava nada. Naldo, então caia em seu mutismo e saía logo em seguida. Naquele dia não parei de pensar no que ele me disse e quando fui no centro comprei um caderno de desenho grande, um lápis e umas coleções. Falei pra ele que era pra tentar colocar no papel e me mostrar depois, pois eu queria entender mais tudo aquilo que acontecia com ele. Por aquela época eu tinha assistido um documentário sobre o Arthur Bispo do Rosário e achava, cheia de fé, que o Naldo poderia também expressar as perturbações de sua alma como o artista do manicômio de Juliano Moreira. Eu entreguei tudo pra ele e esperei uns dias pra lhe perguntar se havia feito algo.
No dia em que dei os presentes houve alegria e surpresa da parte dele, mas o feito não provocou nenhuma reação em Naldo, ao contrário. Dias depois ele me disse que não conseguia escrever nem desenhar e não quis muita conversa comigo. Algum tempo depois, Naldo ficou completamente perturbado, sua irmã me contou cheia de pena dele os últimos acontecimentos. A polícia foi chamada mais o pessoal do manicômio pra levar ele, estava muito agressivo. A força de Naldo aumentava muito, era preciso vários homens pra segurá-lo. Daquela vez porém, foi impossível. Na luta corporal, ele escapou e correu. Disseram que ambulância e viatura policial não foram capazes de alcançá-lo, ou talvez apenas tenham seguido ele sem querer assustá-lo. Naldo correu e correu o dia inteiro, descalço e sem camisa. No fim da tarde, algumas pessoas  disseram tê-lo visto lá na vila do Poti. E os pescadores afirmaram eufóricos que viram um vulto de homem suspenso e paralisado parecendo olhar-se sob a tênue linha divisória das águas encontradas dos dois rios.